5 de novembro – Ano da Fralda Geriátrica Depend

Aqui vai outro capítulo do Infinte Jest traduzido & revisado pelo Elton Mesquita. Este texto corresponde às págs. 242 a 258 do IJ. Mais algumas explicações: esta e a outra tradução de capítulos do IJ postadas neste blog foram publicadas pelo Elton Mesquita nos idos de 2004~2005, e foram revisadas por ele em 2011. Ainda: o Infinite Jest está sendo traduzido pelo Caetano Galindo e sairá pela Companhia das Letras em 2013. Os trechos postados aqui servem pra ajudar a divulgar o David Foster Wallace aqui no Brasil, e pro pessoal conhecer um pouco do IJ.

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5 de novembro – Ano da Fralda Geriátrica Depend

Tradução de Elton Mesquita

O telefone transparente soou de algum lugar embaixo do monte de lençóis. Hal estava sentado na borda da cama com uma perna levantada e o queixo apoiado no joelho, cortando as unhas num cesto de lixo afastado a vários metros no meio da sala. Levou quatro toques para achar o telefone em meio aos lençóis e puxar a antena.

‘Mmmalou.’

‘Sr. Incredenza, aqui é da Comissão de Esgoto de Enfield, e falando francamente, já aturamos merda demais do Sr.’

‘Alô Orin.’

‘Como vai, garoto.’

‘Deus, por favor não, por favor O., chega de questões sobre o Separatismo.’

‘Relaxe. Nem pensei nisso. Ligação social. Jogar conversa fora.’

‘Interessante que você tenha ligado agora. Porque eu estou aparando as unhas num cesto de lixo vários metros afastado de mim.’

‘Jesus, você sabe o quanto eu odeio o som de cortador de unha.’

‘Mas eu estou acertando mais de setenta por cento. Os pedacinhos cortados. É impressionante. Me dá vontade de sair e chamar alguém pra ver. Mas eu não quero quebrar o encanto.’

‘A sensação frágil de encantamento daqueles intervalos quando a gente sente que não dá pra perder.’

‘Este é definitivamente um deles. Intervalos de não perder. É que nem aquela sensação mágica naqueles dias raros de jogo. Jogando fora da cabeça, é como DeLint chama. Loach chama de A Zona. Estar n’A Zona. Aqueles dias em que você se sente perfeitamente calibrado.’

‘Coordenado feito Deus.’

‘Algum recesso na forma do ar, do dia, guiando tudo.’

‘Quando você sente como se não pudesse perder mesmo se tentasse.’

‘Eu estou tão afastado que a boca do cesto parece mais uma fenda que um círculo. E mesmo assim lá vão elas, ka-ching ka-ching. Lá se foi outra. Mesmo as que eu erro eu quase acerto, batem na borda.’

‘Eu estou aqui sentado com a perna na banheira de uma terapeuta muscular norueguesa, numa casa estilo rancho 1100 metros acima do nível no mar nas montanhas Superstition. Mesa-Scottsdale está em chamas agora. O banheiro tem painéis de pau-brasil e vista pro abismo. A luz do Sol tem cor de bronze.’

‘Mas você nunca sabe quando a magia vai vir. Você nunca sabe quando o recesso vai se abrir. E quando a magia vem você não quer mudar o mínimo detalhe. Você não sabe que concordância de fatores e variáveis resulta naquela sensação não-dá-pra-eu-errar, e você não quer arruinar a magia tentando descobrir qual seja, mas você não quer mudar sua pegada, sua raquete, seu lado da quadra, seu ângulo de incidência de Sol. Seu coração vai pra garganta a cada vez que você tem que mudar de quadra.’

‘Você começa a parecer um nativo supersticioso. Como é que diz, apascentando o encanto divino.’

‘De repente eu entendo o impulso do deus-te-crie, o sal jogado sobre o ombro e sinais apotropaicos de taberna. De verdade, eu estou com medo de mudar de pé neste instante. Eu estou cortando fora os pedaços de unha menores e ainda aerodinamicamente viáveis, pra prolongar o tempo neste pé, no caso da magia ser uma função do pé. Esse não é nem meu pé bom.’

‘Esses intervalos não-posso-perder fazem de todos nós nativos supersticiosos, Hallie. O jogador de futebol americano profissional é talvez o mais supersticioso nativo de todos os esportes. Por isso toda a almofadaria high-tech e Lycra berrante e complexa terminologia de jogo. A, tipo, tranquilizadora demonstração de alta tecnologia. Porque o nativo de olho esbugalhado está à espreita logo abaixo da superfície, e a gente sabe. O nativo de saia de palha, sacudindo a lança, olho esbugalhado, alimentando Popogatapec com virgens, com medo de aviões.’

‘O novo O.E.D. Discursivo diz que os Ahts de Vancouver costumavam cortar gargantas de virgens e derramar o sangue com bastante cuidado nos orifícios dos corpos embalsamados de ancestrais.’

‘Eu estou ouvindo o cortador. Para com o cortador um segundo.’

‘O telefone não está mais atochado debaixo da minha mandíbula. Eu posso até cortar com uma mão só, segurando o telefone com a outra. Mas ainda é o mesmo pé.’

‘Você não sabe nada de superstição atlética séria até chegar no ranque profissional, Hallie. Quando você chegar no Show aí é que você vai ver primitivismo. Uma boa fase traz o nativo borbulhando pra superfície. Protetores sem lavar, jogo depois de jogo, até ficar de pé sozinhos no compartimento de bagagem do avião. Rituais bizarros para se vestir, comer, mijar.’

‘Micturação.’

‘Imagine um atacante de 200 quilos insistindo em mijar sentado. Nem queira saber o que esposas e namoradas têm que aguentar durante uma dessas ondas não-dá-pra-perder.’

‘Não quero saber de nada sexual.’

‘E tem os jogadores que escrevem exatamente o que eles dizem pra todo mundo antes de um jogo, porque se aquele for um dos jogos não-dá-pra-perder então no próximo eles podem repetir tudo o que disseram pras mesmas pessoas na mesma ordem.’

‘Aparentemente os Ahts enchiam os corpos dos ancestrais com sangue de virgem pra preservar a privacidade de seus estados mentais. O ditado Aht apropriado sendo abre aspas “O fantasma saciado não pode ver coisas secretas”. O O.E.D. Discursivo afirma que esse é um dos mais antigos tratamentos conhecidos contra esquizofrenia.’

‘Ei Hallie?’

‘Depois do funeral, parece que os Quebequianos da região rural de Papineau perfuravam um buraquinho da superfície até a tampa do caixão, pra deixar a alma sair, se ela quisesse sair.’

‘Ei Hallie? Eu acho que estou sendo seguido.’

‘Este é o grande momento. Eu terminei completamente com o pé esquerdo e estou mudando pro pé direito. Este vai ser o grande teste da fragilidade do encantamento.’

‘Eu disse que acho que estou sendo seguido, Hal.’

‘Alguns homens nascem pra liderar, O.’

‘É sério. E a parte esquisita é que —’

‘Que explica porque você está compartilhando isso com seu irmãozinho distante em vez de com alguém cuja credulidade você realmente apreciaria.’

‘A parte esquisita é que eu acho que estou sendo seguido por… aleijados.’

‘Dois em três no pé direito, com um rebote. Não dá pra saber, ainda.’

‘Pare com isso um segundo. Eu não estou brincando. Que nem no outro dia. Eu começo a conversar com uma Situação na fila do correio. E noto um sujeito numa cadeira de rodas atrás da gente. Nada demais. Você está ouvindo?’

‘O que você foi fazer no correio? Você odeia correio normal. E o Mario diz que você parou de enviar os formulários preenchidos pra Mamis já faz dois anos.’

‘Mas então a conversação vai bem, Estratégias de Sedução 12 e 16 são empregadas, sobre as quais eu vou te falar qualquer hora dessas. O que acontece é que a Situação e eu saímos juntos, nos entrosando, e aí tem outro cara numa cadeira de rodas esculpindo num pedacinho de madeira com um canivete à sombra do toldo de uma loja no fim da rua. OK. Até aqui nada está necessariamente acontecendo. Mas agora a Situação e eu nos dirigimos pro trailer dela —’

‘Phoenix tem parques de trailers? Não aqueles trailers prateados de metal…?’
‘Então mas nós saímos do carro, e do outro lado do estacionamento tem outro cara numa cadeira de rodas tentando manobrar, sem muito sucesso.’

‘O Arizona não está repleto de velhos e enfermos?’

‘Mas nenhum desses aleijados era velho. E todos eram fortes demais pra caras em cadeiras de roda. E três numa hora, eu achei, é meio forçar a barra.’

‘Eu sempre imagino seus pequenos encontros em cenários mais domésticos, em bairros nobres. Ou motéis gigantes com camas de formato exótico. Mulheres em trailers de metal têm ao menos filhos pequenos?’

‘Esta tinha pequeninas gêmeas muito lindas que ficaram brincando com bloquinhos o tempo todo.’

‘Me toca o velho coração, O.’

‘E mas então eu levanto acampamento do trailer tipo um número x de horas depois, e o cara ainda está lá, atolado no barro. E à distância eu jurava que ele estava usando algum tipo de máscara com capuz. E agora pra onde quer que eu vá pelos últimos dias parece haver um número estatisticamente improvável de pessoas em cadeiras de roda na área, espreitando, assim um pouco relaxadas demais.’

‘Fãs muito tímidos, talvez? Algum clube de pessoas com problemas nas pernas, obcecadas daquele jeito tímido de fã com uma das primeiras figuras do esporte Norte-Americano em que as pessoas pensam quando pensam na palavra perna?’

‘Provavelmente sou eu imaginando. Um pássaro morto caiu na minha hidro.’

‘Mas deixe eu te perguntar umas duas coisas.’

‘Nem foi por causa disso que eu liguei, aliás.’

‘Mas você mencionou parques de trailers e trailers. Eu preciso confirmar algumas suspeitas — dois pontos, lá dentro, ka-ching. Já que nunca estive num trailer, e que até o O.E.D Discursivo tem uma lacuna no que se refere a trailers de parque de trailers.’

‘E este é o suposto membro não-pancada da família pra quem eu arranjo de ligar. É esse quem eu me dirijo.’

‘Seria a quem, eu acho. Mas esse trailer. Esse trailer da mulher que você conheceu. Confirme ou negue o seguinte. O carpete vai de parede a parede e é extremamente fino, meio amarelo queimado ou laranja.’

‘Sim.’

‘A sala ou sei lá covil continha alguns ou todos dos seguintes itens: Uma pintura de veludo negra retratando um animal; Um diorama videofônico em uma prateleira de bibelôs; Um trabalho de bordado com algum dizer bíblico raso; pelo menos uma peça de mobília revestida de chita com paninhos pra proteger; um cinzeiro com filtro de ar Sai-Fumaça; Os Reader’s Digests dos últimos dois anos, bonitinhamente organizados em seu rackzinho especial para revistas.’

‘Pintura de veludo de um leopardo confere, sofá com guardanapinhos nos braços confere, cinzeiro confere. Nada de Reader’s Digests. Isso não é engraçado, Hallie. A Mamis transparece em você nessas horas.’

‘Última. O nome da pessoa do trailer. Jean. May. Nora. Vera. Nora-Jean ou Vera-May.’

‘…’

‘Foi essa a pergunta.’

‘Eu acho que vou ter que te dizer depois.’

‘Rapaz, você escreve romance com r minúsculo, hein.’

‘Mas eu estou ligando porque —’

‘Ainda não está claro se a frágil magia do não-posso-perder ainda está em ação no pé direito. Estou em sete pra nove, mas há uma sensação diferente de, de alguma forma, estar deliberadamente tentando acertar.’

‘Hallie, tem uma pessoa da porra da revista Moment aqui trabalhando num aspas perfil ameno.’

‘Tem o quê?’

‘Uma matéria de interesse humano. Em mim, como humano. A Moment não cobre esportes de impacto, diz a mulher. Eles são mais pra perfil de personalidades, de interesse humano. É prum negócio chamado aspas Pessoas de Agora, uma seção da revista.’

‘A Moment é uma revista de boca de caixa de supermercado. Fica junto dos cigarros e chicletes. A Alice Moore Lateral lê a Moment. Tem um monte na sala de espera de C.T. Eles fizeram uma matéria sobre aquele menino cego de Illinois que o Thorp achou ótima.’

‘Hal.’

‘Eu acho que a Alice Lateral fica um monte de tempo em filas de caixa no supermercado, o que pensando bem é quase o ambiente ideal para ela.’

‘Hal.’

‘… Já que ela só se locomove de lado.’

‘Hallie, essa garota fisicamente imponente da Moment está fazendo um monte de perguntas amenas sobre o histórico da família.’

‘Ela quer saber sobre O Próprio?’

‘Todo mundo. Você, o Cegonha Louca, a Mamis. Está ficando claro pra mim que vai ser uma espécie de memorial ao Cegonha enquanto patriarca, os talentos e triunfos analisados como algum tipo de tributo refratário à carreira do El Cegoño.’

‘Você dizia que ele projetava uma sombra grande.’

‘Claro e meu primeiro pensamento é mandar ela ir lamber macaco. Mas a Moment está em contato com o time. O escritório central deixou claro que um perfil ameno seria positivo para o time. O Estádio Cardinal não está digamos gemendo sob o peso dos fãs, independente da boa fase. Eu pensei também em mandar ela pro Bain, deixar o Bain babujar pra ela ou responder via carta; só pra analisar as sentenças ela levaria um mês.’

‘Uma fêmea. Não é a típica Situação do Orin. Uma jornalista durona, ágil, talvez até sem criança pequena, direto de Nova Iorrrque num voo noturno. E você disse imponente.’

‘Não tão dura ou forte, mas fisicamente imponente. Grande mas nada broxante. Mulher e meia pra todo lado.’

‘Uma garota que domina o espaço de qualquer trailer.’

‘Chega de trailerismos.’

‘O tom tenso sou eu tentando falar e apanhar unhas do pé do chão ao mesmo tempo.’

‘Ela é imune à maioria das distrações conversacionais.’

‘Você teme estar perdendo o jeito. Uma mulher e meia imune.’

‘Eu disse distração, não sedução.’

‘Você meio que sabiamente evita qualquer fêmea que você suspeita que possa arrebentar com você se chegasse a esse ponto.’

‘Ela é mais imponente que nossos zagueiros. Mas estranhamente sexy. Os atacantes estão loucos. Os tackles ficam fazendo piada se ela não estaria a fim de ver um perfil duro.’

‘Esperemos que o estilo dela seja melhor que o de quem fez aquela matéria de interesse humano sobre o garotinho cego ano passado. Você pegou dela esse seu novo medo de aleijados?’

‘Escute. Você mais que qualquer um deveria saber que eu não tenho intenção de responder direito a nenhuma pergunta tipo roupa-suja-da-família, muito menos pra alguém que estenografa. Tendo atrativos físicos ou não.’

‘Você e o tênis, você e os Saints, O Próprio e o tênis, a Mamis e Quebec e Royal Victoria, a Mamis e a imigração, O Próprio e a anulação, O Próprio e Lyle, O Próprio e espíritos destilados, O Próprio matando a si próprio, você e Joelle, O Próprio e Joelle, a Mamis e C.T, você vs. a Mamis, A A.T.E., filmes inexistentes etc.’

‘Mas você vê o que eu pensei. Como evitar ser direto com respeito às coisas do Cegonha se eu não sei quais são as respostas diretas?’

‘Todos disseram que você ainda se arrependeria de não ter ido ao funeral. Mas acho que não queriam dizer desse jeito.’

‘Por exemplo o Cegonha se apagou antes de C.T. se mudar pro andar de cima no HmH? Ou depois?’

‘Você me pergunta?’

‘Não torne isso escabroso.’

‘Eu nem sonharia em tentar.’

‘…’

‘Imediatamente antes. Dois, três dias antes. C.T. tinha o que é agora a sala de DeLint perto da do Schtitt, no Com-Ad’.
‘E o papai sabia que eles eram…?’

‘Muito íntimos? Eu não sei, O.’

‘Você não sabe?’

‘Mario talvez saiba. Você não gostaria de roer esse osso com o Dodói, O.?’

‘Não faça assim, Hallie. E o papai… o Cegonha Louca pôs a cabeça no forno?’

‘No microondas, O. O microondas de rotisserie perto da geladeira, ao lado do freezer, perto do balcão, debaixo do gabinete com os pratos e vasilhas à esquerda da geladeira de quem olha pra geladeira.’

‘Um forno de microondas.’

‘Dá no mesmo, O.’

‘Ninguém disse microondas.’

‘Foi mencionado no funeral.’

‘Olha, eu já entendi, se você não percebeu.’

‘…’

‘Então onde ele foi encontrado?’

‘20 de 28 é o quê, 65%?’

‘Não é como se fosse tudo que —’

‘O microondas estava na cozinha eu já expliquei, O.’

‘Certo.’

‘Certo.’

‘Então Ok certo, quem você diria que fala mais do cara, mantém a memória dele viva, verbalmente: você, C.T. ou a Mamis?’

‘Acho que dá empate triplo.’

‘Então nunca. Ninguém fala sobre ele. É tabu.’

‘Mas acho que você está esquecendo de alguém.’

‘Mario fala sobre ele. Sobre aquilo.’

‘Às vezes.’

‘Com o que e/ou quem ele conversa tanto?’

‘Comigo, pra começar, acho.’

‘Então você fala sim sobre aquilo, mas apenas com ele, e só depois que ele começa.’

‘Orin, eu menti. Eu nem comecei o pé direito ainda. Estou amedrontado demais pra mudar meu ângulo de aproximação às unhas. O pé direito está num ângulo completamente diferente. Temo que a magia dependa do pé esquerdo. Estou que nem o seu atacante supersticioso. Quebrei o encanto falando sobre isso. Agora estou consciente e com medo. Estou sentado aqui na beira da cama com meu joelho direito debaixo do queixo, parado, estudando o pé paralisado com terror aborígene. E mentindo a respeito pro meu próprio irmão.’

‘Posso perguntar quem foi que o encontrou? O que — quem o encontrou no forno?’

‘Encontrado por um certo Harold James Incandenza, treze anos e ficando velho rápido.’

‘Foi você quem o encontrou? Não a Mamis?’

‘Escute, posso perguntar por que esse interesse súbito após quatro anos e 216 dias, depois de dois anos sem ligar?’

‘Já disse que não me sinto confiante para responder às perguntas dessa Helen se eu não tiver uma ideia do que estou omitindo.’

‘Helen.’

‘É por isso.’

‘Ainda estou paralisado, por sinal. A consciência própria que arruína a magia está ficando pior e pior. Por isso que Pemulis e Troeltsch sempre perdem partidas ganhas. O termo padrão é Endurecer. O cortador está posicionado com as lâminas dos dois lados da unha. Eu só não consigo alcançar a inconsciência necessária pra cortar. Talvez tenha sido apanhar as unhas caídas. De repente a cesta parece pequena e distante. Perdi a magia ao falar sobre ela ao invés de apenas ceder. Lançar a unha em direção ao cesto agora parece mais um exercício em telemacria.’

‘Quer dizer telemetria?’

‘Quão embaraçoso. Quando a gente erra, erra tudo.’

‘Escute.’

‘Sabe, porque você não vai em frente e me pergunta quaisquer que sejam as perguntas odientas padrão que você não quer responder. Pode ser sua única chance. Parece que eu não falo muito sobre isso.’

‘Ela estava lá? A G.M.B.D.M.?’

‘Joelle não aparecia desde que vocês dois se separaram. Você sabia disso. O Próprio a encontrou numa filmagem. Aposto que você sabe muito mais sobre o que quer que eles estivessem tentando fazer. Joelle e O Próprio. Então O Próprio desceu pro porão. C.T. já estava fazendo quase toda a administração diária. O Próprio ficou naquele armarinho de pós-produção perto do laboratório por tipo um bom mês. Mario levava comida e… itens de primeira necessidade. Às vezes ele comia com o Lyle. Acho que não voltou ao nível do solo por pelo menos um mês, exceto por uma viagem pra Belmont, pro Mclean’s para uma limpeza e desintoxicação de dois dias. Isso uma semana depois dele ter voltado. Ele pegou um voo pralgum lugar por três dias, então, pelo que me pareceram motivos de negócio. Sobre filmes. Se Lyle não foi com ele Lyle foi pra algum lugar, porque ele não ficou na sala de pesos. Eu sei que Mario não foi com ele e não sabia o que estava acontecendo. Mario não mente. Não ficou claro se ele havia terminado o que quer que estivesse editando. O Próprio. Ele parou de viver no Primeiro de Abril, esse foi o dia pro caso de você não ter certeza. Eu sei que ele não tinha voltado pela hora em que as partidas da tarde tinham começado, porque eu tinha estado perto do laboratório logo depois do almoço e ele ainda não estava lá.’

‘Ele se internou pra desintoxicação. Em março, é isso?’

‘Até a Mamis emergiu e se arriscou a trafegar lá fora, para levá-lo, então eu arriscaria dizer que era bem urgente.’
‘Ele parou com a bebida em Janeiro, Hal. Joelle foi bem clara sobre isso. Ela me ligou mesmo depois de termos concordado em não nos ligar e me falou sobre isso mesmo depois de eu ter dito que não queria saber de nada dele enquanto ela estivesse trabalhando nos filmes dele. Ela disse: nem uma gota em semanas. Foi a condição que ela impôs pra que ele pudesse usá-la no que ele estava criando. Ela disse que ele disse que faria qualquer coisa.’

‘Bem, eu não sei o que te dizer. Por essa época já estava bem difícil saber se ele estava ingerindo algo ou não. Aparentemente depois de um certo ponto isso deixa de fazer diferença.’

‘Ele tinha coisas de filme com ele quando tomou o tal voo? Uma lata de filme? Equipamento?’

‘O., eu não o vi partir e não o vi voltar. Ele não estava por perto durante o horário das partidas, isso eu sei. Freer ganhou de mim rápido e fácil. Foi 4-1 e 4-2, algo assim, e nós fomos os primeiros a terminar. Eu voltei pro HmH pra colocar alguma roupa pra lavar antes do jantar. Isso por volta das 1630. Eu cheguei e notei algo imediatamente.’

‘E o encontrou.’

‘E fui chamar a Mamis, daí mudei de ideia e fui chamar C.T, daí mudei de ideia e fui chamar Lyle, mas a primeira pessoa de autoridade que encontrei foi Schtitt. Que foi irrepreensivelmente rápido e eficiente e ponderado a respeito de tudo e se revelou a pessoa ideal pra eu ter ido chamar em primeiro lugar.’

‘Eu nem sabia que um microondas poderia ser ligado a não ser de porta fechada. Por causa das microondas oscilando lá dentro, e tudo. Eu pensei que existia algum dispositivo tipo porta de geladeira ou proteção contra gravação.’

‘Você parece esquecer a inventividade técnica da pessoa de quem estamos falando.’

‘E você ficou totalmente chocado e traumatizado. Ele foi asfixuado, irradiado e/ou queimado.’

‘Depois nós reconstruímos a cena, e vimos que ele tinha usado uma furadeira circular e uma serra de mão pra cortar um buraco do tamanho da cabeça na porta do forno, e então, depois de ter enfiado a cabeça lá dentro, tinha preenchido o espaço extra ao redor do pescoço com papel alumínio amassado.’

‘Gambiarrinha feia.’

‘Todos são críticos. Aquilo não foi uma empreitada estética.’

‘…’

‘E havia uma grande garrafa de Wild

Turkey cheia pela metade no balcão próximo, e uma grande fita de embrulho pra presente no pescoço.’

‘No pescoço da garrafa.’

‘Depreende-se.’

‘Tipo ele não estava sóbrio de jeito nenhum.’

‘É o que parece, O.’

‘E ele não deixou nota ou testamento em vídeo ou comunicado de nenhum tipo.’

‘O, eu sei que você sabe muito bem que não. Agora você pergunta coisas que eu sei que você sabe, além de criticá-lo e babujar sobre sobriedade quando você não chegou nem perto do local do funeral. Já terminamos com isso? Eu estou com um pé direito com unhas enormes me esperando aqui.’

‘Vocês reconstruíram a cena, você disse.’

‘Também acaba de me ocorrer que tenho que devolver um livro à biblioteca. Eu tinha esquecido completamente. Capou.’

‘”Reconstruíram a cena” no sentido de que a cena quando vocês o encontraram estava meio… desconstruída?’

‘Logo você, O. Você sabe que essa era a palavra que ele odiava mais do que —’

‘Então tá, queimado. Apenas diga. Ele estava muito muito queimado.’

‘…’

‘Não, espere. Asfixuado. O alumínio era pra preservar o vácuo num espaço automaticamente evacuado assim que o magnitron começou a oscilar, gerando as microondas.’

‘Magnitron? O que é que você sabe sobre magnitrons e osciladores? Não é você o meu irmão que tem que ser lembrado de pra qual lado se gira a chave do carro?’

‘Uma coisinha breve com uma Situação que era modelo em feiras de produtos do lar.’

‘…’

‘Era um tipo brutal de modelismo. Ela ficava lá numa plataforma rotativa, usando uma peça única, com uma coxa virada pra dentro e uma mão com a palma pra cima, indicando o utilitário ao lado. Ficava lá sorrindo e girando dia após dia. Ela passava metade da noite balançando, tentando recuperar o equilíbrio.’

‘Essa Situação por acaso te falou como um microondas cozinha?’

‘…’

‘Ou você já por exemplo, digamos, cozinhou uma batata num forno de microondas? Você sabia que é preciso cortar a batata ao meio antes de ligar o forno? Você sabe por quê?’

‘Jesus.’

‘O patologista de campo do D.P.B. disse que o acúmulo de pressão interna foi quase instantâneo e equivalente em kgs/cm a mais de duas bananas de TNT.’

‘Jesus Cristo, Hallie.’

‘Portanto a necessidade de reconstruir a cena.’

‘Jesus.’

‘Não se sinta mal. Não há garantia de que alguém lhe diria isso mesmo que você tivesse aparecido pra cerimônia. Eu por exemplo não estava o tagarela na época. Parece que eu estava demonstrando trauma e choque durante todo o período do funeral. Do que eu me lembro é de muita conversa sussurrada sobre meu bem-estar psíquico. Chegou a um ponto em que eu comecei a gostar de aparecer e sumir de salas só pra saborear as conversas sussurradas parando no meio de uma sentença.’

‘Você deve ter ficado traumatizado pra caralho.’

‘Sua preocupação é apreciada, creia-me.’

‘…’

‘Trauma parece ter sido o consenso. No fim, a Mamis e Rusk tinham começado a consultar os melhores conselheiros de trauma e luto algumas horas após ter acontecido. Eu fui manobrado direto pra dentro de terapia concentrada de trauma e luto. Quatro dias por semana por mais de mês, bem no meio da preparação de abril-maio pra turnê de verão. Eu perdi dois lugares no ranking dos 14 anos por causa de tanto treino que perdi. Eu perdi as qualificatórias de Hard Court e teria perdido Indianápolis se… se eu não tivesse finalmente entendido o processo de luto e trauma.’

‘Mas funcionou. Afinal. A terapia de luto.’

‘A terapia acontecia naquele Edifício Profissional perto da Av. Comm. depois da Sunstrand Plaza, perto do lago, com os tijolos da cor de molho de salada Thousand Island pelo qual passamos quatro dias por semana. Quem iria saber que os melhores profissionais do luto estariam ali no fim da rua.’

‘A Mamis não queria que o processo se desse muito longe da velha teia, estou certo.’

‘Esse conselheiro do luto insistia em que eu o chamasse pelo primeiro nome, que eu já esqueci. Um sujeito forte vermelho enorme com sobrancelhas em um ângulo sinclinal demoníaco e dentes cinzentos bem pequeninos. Sempre com um resto de espirro no bigode. Eu conheci aquele bigode bem. O rosto dele tinha o mesmo tipo de pressão de fluxo sanguíneo que o de C.T. E não vou nem falar das mãos dele.’

‘A Mamis mandou Rusk te manobrar prum profissional top de linha do luto pra não ter que se sentir culpada por ter praticamente serrado ela mesma a porta do forno. Uma de várias manobrinhas de culpa e anticulpa. Ela sempre achou que o Próprio estava fazendo mais que apenas trabalhar com Joelle. Coitado d’O Próprio não tinha olhos pra ninguém mais além da Mamis.’

‘Aquele foi um nó-cego, O., aquele conselheiro do luto. Ele fazia uma sessão com o Rusk parecer um dia no Adriático. Ele não parava: “Como se sentiu, como se sente, como você se sente quando eu pergunto como se sente.”

‘Rusk sempre me lembrou um calouro tateando o sutiã de uma Situação, o jeito que ele puxa e futuca na sua cabeça.’

‘O homem era insaciável e assustador. Aquelas sobrancelhas, a cara de casca de presunto, os olhinhos brandos. Ele jamais virou o rosto ou olhou em outra direção que não a minha. Foram as seis semanas de conversação profissional total mais brutais que alguém pode imaginar.’

‘Com a porra do C.T. já mudando a coleção de sapatos plataforma e perucas fajutas e EscadaMaster pro andar de cima do HmH.’

‘Tudo foi um pesadelo. Eu não conseguia descobrir o que o sujeito queria. Eu fui e digeri tudo da seção de luto da biblioteca de Copley Square. Não em disquete. Livros mesmo. Eu li Kübler-Ross, Hinton. Eu mourejei com Kastenbaum e Kastenbaum. Eu li negócios como Sete Escolhas: Dando os Passos Para Uma Nova Vida Após Perder Alguém Que Você Ama de Elizabeth Harper Neeld, 352 páginas de pura gosma. Eu fui e me apresentei com sintomas perfeitos, direto dos livros, de negação, barganha, raiva, mais negação, depressão. Eu listei minhas sete escolhas e vacilei plausivelmente entre elas. Eu apresentei dados etimológicos sobre a palavra aceitação que iam até Wyclif e Francês langue-d’oc do século XIV. O terapeuta do luto não deu a mínima. Era que nem um daqueles testes finais em pesadelos onde você se prepara imaculadamente e aí você chega lá e todas as questões da prova estão em hindu. Eu até tentei contar pra ele que O Próprio estava um caco e pancreático e fora de Si Próprio metade do tempo enfim, que ele e a Mamis estavam isolados, que nem o trabalho e Wild Turkey adiantavam mais, que ele estava deprimido por causa de algo que ele estava editando que havia saído tão ruim que ele não queria que fosse lançado. Que ter… que o que aconteceu foi provavelmente misericordioso, no final.’

‘O Próprio não sofreu, então. No microondas.’

‘O patologista de campo do D.P.B. que riscou a silhueta de giz ao redor dos sapatos do Próprio no chão disse que dez segundos no máximo. Ele disse que o acúmulo de pressão teria sido quase instantâneo. Daí ele fez um gesto pras paredes da cozinha. Daí ele vomitou. O patologista de campo.’

‘Jesus Cristo, Hallie.’

‘Mas o terapeuta do luto não dava a mínima, não quis nem saber desse ângulo pelo-menos-seu-sofrimento-acabou que Kastenbaum e Kastenbaum disse ser basicamente um sinal brilhante-neon de aceitação verdadeira. O terapeuta de luto lá que nem um monstro Gila. Eu até tentei dizer que eu realmente não sentia nada.’

‘O que era uma ficção.’

‘Claro que era uma ficção. O que eu podia fazer? Eu estava em pânico. Esse cara era um pesadelo. O rosto dele só ficava lá pendurado sobre a mesa como uma lua hipertensa, sem nunca olhar pra outro lado. Com aquele orvalho mucoso no bigode. E nem me pergunte sobre as mãos. Ele foi meu pior pesadelo. Falando em auto-consciência e medo. Ele era uma sumidade da autoridade terapêutica e eu não estava conseguindo dar o que ele queria. Ele deixou bem claro que eu não estava cumprindo as expectativas. Eu nunca tinha falhado em cumprir expectativas antes.’

‘Você era nosso cumpridor de expectativas designado, Hallie, sem dúvida.’

‘E então mas aqui estava um autoridade com as melhores credenciais em molduras por cada cm quadrado das paredes que só ficava sentado e se recusava até a definir quais eram as expectativas. Diga o que você quiser sobre Schtitt e deLint: eles te comunicam o que eles querem de forma clara. Flottman, Chawaf, Prickett, Nwangi, Fentress, Lingley, Pettijohn, Ogilvie, Leith, até a Mamis do jeito dela: eles dizem no primeiro dia de aula o que eles querem de você. Mas aquele filha da pústula: sem jogo.’

‘Você devia estar em choque esse tempo todo, também.’

‘O., ficou pior. Eu perdi peso. Eu não conseguia dormir. Foi quando os pesadelos começaram. Eu comecei a sonhar com um rosto no assoalho. Eu perdi pro Freer de novo, e então pro Coyle. Joguei três sets com Troeltsch. Levei B em duas provas diferentes. Eu não conseguia me concentrar em mais nada. Comecei a ficar obcecado sobre que eu ia levar pau na terapia de luto. Que este profissional ia contar pro Rusk e pro Schtitt, pro C.T. e pra Mamis que eu não consegui cumprir as expectativas.’

‘Sinto muito por não ter estado lá.’

‘Estranho foi que quanto mais obcecado eu ficava, quão pior eu jogava e dormia, mais feliz todo mundo ficava. O terapeuta do luto me cumprimentou pela minha má aparência. Rusk contou pro deLint que o terapeuta do luto disse pra Mamis que estava começando a funcionar, que eu estava começando a lamentar, mas que seria um processo demorado.’

‘Demorado e caro.’

‘Câmbio. Eu comecei a desesperar. Eu comecei a prever que de alguma forma ficaria preso na terapia de perda, nunca cumprindo as expectativas, nada nunca terminando. Tendo essas interfaces Kafkianas com esse homem dia após dia, semana após semana. Era maio já. O campeonato Continental Clays, no qual no ano anterior eu tinha avançado até a quarta rodada, estava se aproximando, e calmamente ficou claro que todos acreditavam que eu estava num ponto crucial no demorado e caro processo de luto, e que eu não iria com o time para Indianápolis a não ser descobrindo algum modo desesperado de último minuto de cumprir as expectativas desse sujeito. Eu estava completamente desesperado, uma ruína.’

‘Aí você vazou pra sala de pesos. Você e sua testa foram visitar o velho Lyle.’

‘Lyle acabou sendo a solução. Ele estava lá embaixo lendo Folhas de Relva. Ele disse que estava num período Whitman, como parte do processo de luto pel’O Próprio. Eu nunca tinha me aproximado de Lyle antes de forma suplicante alguma, mas ele disse ter dado uma olhada enlutada em minha direção, e depois de me ver malhando que nem louco, porejando um suor gourmet, disse que se sentiu tão tocado por meu sofrimento adicional, além de ter sido o primeiro dos que O Próprio amava a sentir sua falta, que ele faria qualquer esforço cerebral pra me ajudar. Eu me posicionei e o deixei lamber a testa velha e expliquei o que vinha acontecendo e que se eu não descobrisse uma maneira de satisfazer esse profissional do luto eu ia acabar num quarto quieto e macio em algum lugar. A iluminação principal de Lyle foi que eu estava encarando o problema pelo ângulo errado. Eu tinha ido à biblioteca e agido como um estudante do luto. O que eu precisava digerir era a seção de luto para profissionais do luto. Precisava me preparar da perspectiva do profissional do luto. Como eu poderia saber o que um profissional ia querer a não ser que eu soubesse o que ele era requerido por profissão a querer etc. Era simples, ele disse. Eu precisava empatizar com o terapista do luto, Lyle disse, se eu quisesse superá-lo. Era uma reversão tão simples de minha usual preparação para cumprimento de expectativas que não havia me ocorrido nem uma vez, Lyle explicou.’

‘Lyle disse isso tudo? Não parece ele.’

‘Mas uma luz suave apareceu dentro de mim pela primeira vez em semanas. Eu chamei um táxi, ainda de toalha. Pulei pra dentro antes do táxi parar no portão. Eu cheguei a dizer “Pra biblioteca mais próxima com uma seção atualizada de luto e traumaterapia, e pise fundo”. Et cetera et cetera.’

‘O Lyle que minha turma conheceu não era do tipo como-cumprir-expectativas-de-figuras-de-autoridade.’

‘Quando eu fui ao terapeuta no dia seguinte eu era um homem diferente, imaculadamente preparado, inamedrontável. Tudo o que eu temia naquele homem – as sobrancelhas, a música étnica na sala de espera, o olhar implacável, o bigode crocante, os dentinhos cinzentos, até as mãos – terei eu mencionado que este terapeuta do luto escondia as mãos debaixo da mesa todo o tempo?’

‘Mas você superou. Você sofreu ao gosto de todos, é o que você está dizendo.’

‘O que eu fiz foi — eu entrei lá e me apresentei raivoso. Eu acusei o terapeuta do luto de na verdade inibir minha tentativa de processar meu luto, recusando-se a confirmar minha ausência de sentimento. Eu disse a ele que já tinha dito a ele a verdade. Eu usei baixo calão e gíria. Eu disse não dar a mínima se ele era uma figura de autoridade abundantemente credenciada ou não. Eu chamei ele de retardado. Eu perguntei que porra de merda do fodido caralho que ele queria de mim. Meu comportamento geral beirava o paroxismo. Eu disse a ele que tinha dito a ele que não sentia nada, e que era verdade. Eu disse que parecia que ele queria que eu me sentisse toxicamente culpado por não sentir nada. Note que eu estava inserindo sutilmente certos termos profissionais de peso terapêutico como confirmarprocessar como verbo transitivo, e culpa tóxica. Direto da biblioteca.’

‘A diferença toda é que dessa vez você caminhava pela quadra orientado, sabendo onde estavam as linhas, Schtitt diria.’

‘O terapeuta do luto me encorajou a prosseguir com meus sentimentos paroxísmicos, a nomear e honrar minha raiva. Ele ficou mais e mais satisfeito e animado enquanto eu raivosamente dizia que me recusava a sentir um ceitil de culpa de qualquer forma. Eu disse “O quê, queriam que eu tivesse perdido ainda mais rápido pro Freer, pra poder ter chegado em casa a tempo de impedir O Próprio? Não foi minha culpa, eu disse. Não foi minha culpa tê-lo encontrado”, eu gritei; Eu só tinha meias pretas sobrando, era lavanderia de emergência que eu tinha que fazer. A essa altura eu estava batendo no peito com fúria ao dizer que por Deus não tinha sido minha culpa que —’

‘Que o quê?’

‘Foi isso mesmo que o terapeuta do luto disse. A literatura profissional tinha uma seção inteira em negrito sobre Pausas Abruptas No Discurso Com Alta Carga Emotiva. O terapeuta do luto agora estava se inclinando pra frente na altura da cintura. Os lábios dele úmidos. Eu estava na Zona, terapeuticamente falando. Eu me senti por cima pela primeira vez em um longo tempo. Eu desfiz o contato visual com ele. “Que eu estivesse com fome”, eu sussurrei.’

‘O quê?’

‘Foi isso mesmo que ele disse, o terapeuta do luto. Eu murmurei que não era nada, só que com certeza não era culpa minha que eu tivesse reagido como reagi quando passei pela porta da frente do HmH, antes de entrar na cozinha pra descer pro porão e encontrar O Próprio com a cabeça dentro do que sobrou do microondas. Quando eu entrei e ainda estava no vestíbulo tentando tirar os sapatos sem pôr a sacola suja de roupas no carpete branco e pulando e sem poder fazer ideia do que tinha acabado de acontecer. Eu disse que ninguém pode escolher ou controlar os primeiros pensamentos ou reações automáticas quando se entra numa casa. Eu disse que não era minha culpa que a primeira coisa em que eu pensei tivesse sido —’

‘Jesus, moleque, o quê?’

‘ “Que tava um cheirinho gostoso!”, eu gritei. A força do meu berro quase mandou o terapeuta do luto pra trás com cadeira de couro e tudo. Uns diplomas caíram da parede. Eu me curvei em minha cadeira comum como se me preparando pra pouso forçado. Eu pus uma mão em cada têmpora e fiquei balançando pra frente e pra trás na cadeira, chorando. Veio tudo em meio a gritos e soluços. Que eram mais de quatro horas desde o almoço e eu tinha trabalhado duro e jogado duro e estava faminto. Que eu já tinha começado a salivar na hora em que entrei pela porta. Que “Puxa que cheirinho gostoso tinha sido minha primeira reação!”‘

‘Mas você se perdoou.’

‘Eu me absolvi faltando ainda sete minutos de consulta ali sob o olhar aprovador do terapeuta de luto. Ele estava extático. No final, o lado dele da mesa eu juro estava a mais de meio metro do chão, por causa do meu colapso ao pé-da-letra da terapia do luto, que se tornou emoção e trauma genuínos e culpa e lamentação ensurdecedora ao pé-da-letra, e então absolvição.’

‘Cristo de jet-ski, Hallie.’

‘…’

‘Mas você superou tudo. Você lamentou mesmo, então pode me dizer como foi pra eu poder dizer algo assim por alto mas convincente sobre perda e dor pra Helen pra Moment.’

‘Mas eu omiti de alguma forma a coisa mais horripilante sobre esse profissional topo de linha da terapia do luto, que era o fato de que suas mãos nunca ficavam visíveis. O horror daquelas seis semanas de alguma forma se coalesceram ao redor desse tópico, das mãos desse sujeito. As mãos dele nunca emergiam de baixo da sua mesa. Como se os braços terminassem nos cotovelos. Além de análise de material da bigodeira, eu também gastei grande parte de cada sessão tentando imaginar as configurações e atividades daquelas mãos lá embaixo.’

‘Hallie, me deixe só perguntar e eu nunca vou mencionar isso de novo. Você deu a entender há pouco que o que foi especialmente traumático foi que a cabeça d’O Próprio tinha estourado como uma batata inteira.’

‘Então no que acabou sendo o último dia de terapia, o último dia antes de as equipes A serem escolhidas para Indianápolis, depois de eu ter finalmente cumprido as expectativas e minha perda traumática havia sido oficialmente decretada descoberta e estimulada e processada, quando eu pus meu casaco e me preparei para partir, e me aproximei da mesa e estendi a mão de uma maneira grata e trêmula que ele não poderia recusar, e ele se levantou e mostrou a mão e apertou minha mão, eu finalmente entendi.’

‘As mãos dele eram desfiguradas ou algo assim.’

‘As mãos dele não eram maiores que as de uma menininha de quatro anos. Era surreal. Lá estava aquela figura autoritária corpulenta, com uma cara vermelha grande e inchada e bigode grosso de morsa e queixo numa papada que se derramava pra além da borda do colarinho, com mãos que eram pequeninas, rosadas, lisas, macias-bumbum, delicadas feito conchas. As mãos foram a gota. Mal deu tempo de sair do consultório antes que começasse.’

‘A histeria de lembrança catártica pós-traumática. Você se mandou de lá.’

‘Eu mal cheguei ao banheiro masculino no fim do corredor. Eu estava rindo tão histericamente que todos os periodontistas e contadores dos dois lados do banheiro masculino ouviram. Eu sentei na cabine com as mãos na boca, batendo os pés e batendo minha cabeça primeiro contra um lado da cabine depois outro, rindo, numa alegria histérica. Se você tivesse visto aquelas mãos.’

‘Mas você superou tudo, e pode esboçar por alto o sentimento pra mim.’

‘O que eu sinto é que estou juntando forças pro pé direito, finalmente. A sensação mágica está de volta. Eu nem estou alinhando vetores pro cesto, nem nada. Não estou nem pensando. Estou confiando na sensação. É que nem aquele momento em celuloide quando Luke remove o capacete de mira high-tech.’
‘Que capacete?’

‘Você, claro, sabe que unhas humanas são vestígios de garras e chifres. Elas são atávicas, como coccices e cabelo. Que elas se desenvolvem no útero bem antes do córtex cerebral.’

‘E daí?’

‘Que em algum ponto do primeiro trimestre nós perdemos as guelras mas ainda não somos muito além de um saquinho bexiguento de fluido espinhal com uma cauda rudimentar e folículos capilares e pequenos pedacinhos de garra e chifre.’

‘É pra eu me sentir mal? Te fez mal eu perguntar por detalhes depois de tanto tempo? Fez a dor voltar?’

‘Só mais uma confirmação. O interior do trailer. Havia algum objeto ou trio contíguo de objetos com o seguinte esquema de cores: marrom, lavanda e ou verde-menta ou amarelo-narciso.’
‘Eu posso ligar de volta quando você estiver mais tranquilo. A perna está começando a murchar na banheira mesmo.’

‘Eu vou estar bem aqui. Tenho um pé inteiro com o qual me entregar à magia. Não vou alterar o menor detalhe. Estou quase pronto para apertar as lâminas. Vai ser bom, eu sei.’

‘Um cobertor. Como um cobertor afegão, no sofá coberto de chita. O amarelo era mais pro fluorescente que narciso.’

‘E a palavra é asfixiado. Vá chutar algumas bolas com formato de ovo pela gente, O. O próximo som que você vai ouvir vai ser desagradável,’ Hal disse, segurando o telefone ao lado do pé, a expressão terrivelmente intensa.

Inverno 1960 A.P.¹- Tucson AZ

Então: o Elton Mesquita traduziu, lá em 2004, dois capítulos do Infinite Jest e postou no blog que ele tinha na época. Eu entrei em contato com ele pedindo permissão pra postar esses capítulos aqui. Ele revisou os textos, e aqui vai o primeiro.

Essa é a tradução do capítulo entre as págs. 157 e 169 do IJ. E é das coisas mais lindas já escritas.
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Inverno 1960 A.P.¹- Tucson AZ

Tradução de Elton Mesquita

 

Jim desse jeito não Jim. Isso não é jeito de tratar um portão de garagem, curvando os quadris travados e puxando a alça assim, fazendo o portão pular duro e torto e arrebentando suas canelas e meus joelhos ruins, filho. Quero ver você dobrar esses joelhos bons. Quero ver você pousar a mão suave na alça, sentindo o granulado sutil, e puxar com a exata gentileza pra fazer o portão vir até você. Experimente, Jim. Veja de quanta força você precisa pro portão começar a deslizar, deixe que ele suba nas polias e rolamentos engraxados e ocultos no teto cheio de teias. Pense nos portões de garagem como portas de forno bem oleadas e abertas com carne quente dentro e o calor rolando pra fora. Não precisa, é até perigoso, puxar, sacar, abrir, sacudir. Tua mãe empurra e sacode, filho. Ela trata corpos fora de si sem o respeito ou o cuidado devidos. Ela nunca aprendeu que tratar as coisas da maneira mais gentil e relaxada significa tratar a elas e a seu corpo da forma mais eficiente. Culpa do Marlon Brando, Jim. Tua mãe, antes do teu nascimento, ainda na Califórnia, antes de se tornar uma mãe devota e esposa sofredora e ganha-pão, filho, tua mãe teve um papelzinho num filme do Marlon Brando. O grande momento dela. Ficou lá de sapatilha, meia soquete e rabo de cavalo com as mãos nos ouvidos enquanto motocicletas trovejavam ao fundo. Um grande momento dramático, creia-me você. Ela estava amando esse camarada Marlon Brando à distância, filho. Quem? “Quem”. Jim, Marlon Brando era o arquetípico ator com novo físico que arruína o relacionamento de tipo duas gerações inteiras com seus próprios corpos e com os objetos e corpos do dia-a-dia. Não? Pois é por culpa de Brando que você estava abrindo o portão da garagem daquele jeito, Jimbo. O desrespeito se aprende e é passado adiante. Transferido. Você vai reconhecer Brando quando o vir, e você terá aprendido a temê-lo. Brando, Jim, Jesus, B-r-a-n-d-o. Brando, o novo cara durão arquetípico e amarfanhado, se recostando nas pernas traseiras da cadeira, se chegando todo torto pela porta, trombando com tudo que vê pela frente, tentando dominar os objetos, sem demonstrar respeito ou cuidado, puxando as coisas para si feito criança mimada, usando-as e as jogando fora rudemente, errando a cesta de lixo, deixando-as ali do lado, mal utilizadas. Com os movimentos e a postura desajeitada de uma criança mimada. Tua mãe é daquela nova geração que se move a contrapelo da vida, das empenas e defletores. Ela pode ter amado Marlon Brando, Jim, mas nunca o entendeu, e isso foi o que a estragou para artes cotidianas como fornos e portões de garagem e mesmo partidas ruins de tênis em parques públicos. Cê já viu tua mãe com uma porta de forno? É massacre, Jim, de se contorcer só de ver, e a pobre burrinha pensa que está fazendo um tributo a esse troglodita que ela amou quando ele passava pipocando de moto. Jim, ela nunca intuiu a gentil e sagaz economia por trás do modo abre aspas desajeitado com que ele tratava os objetos. O modo como ele tão oh tão claramente praticava ficar penso nas pernas de trás da cadeira. O modo como ele estudava os objetos com o olhar de soldador à procura das juntas mais fortes e centradas que, quando pressionadas pelo mais grosseiro brutamontes ainda aguentam. Ela nunca… nunca entendeu que Marlon Brando se sentia tão preciso enquanto corpo que nem via necessidade de ter modos. Ela nunca entendeu que em seu modo abre aspas desajeitado, ele na verdade tocava cada objeto como se fosse parte dele próprio. De seu próprio corpo. O mundo que ele aparentemente maltratava era pra ele algo consciente, sensível. E ninguém… e ela nunca entendeu isso. Uvas verdes vírgula. Não dá pra invejar alguém assim. Respeitar, talvez. Talvez respeito de aspirante, no máximo. Ela nunca viu que Brando estava jogando o equivalente a tênis de alto nível em sets de filmagem costa-a-costa, Jim, era o que ele estava fazendo. Jim, ele se movia como um salmãozinho nervoso, um grande músculo, musculosamente ingênuo, mas sempre, note, um salmãozinho no centro de uma corrente clara. Aquele tipo de graça animal. O filhadamãe não desperdiçava um movimento, e transformava seu não-dou-a-mínima em arte. Dele era o lema de jogador de tênis: toque as coisas com consideração e elas serão suas; você as possuirá; elas se moverão ou ficarão imóveis por você; elas se reclinarão e abrirão as pernas e entregarão suas mais íntimas dobras pra você. Te ensinarão todos os seu truques. Ele sabia o que os beats sabem e o que os grandes tenistas sabem: aprenda a fazer nada, com sua cabeça e corpo inteiros, e tudo será feito pelo que está à sua volta. Eu sei que você não entende. Ainda. Eu conheço esse olhar esbugalhado de caixa-d’óculos. Eu sei muito bem o que ele significa, filho. Não interessa. Você vai entender. Jim, eu sei o que sei.

Eu prevejo bem aqui, jovem senhor Jim. Você vai ser um grande tenista. Eu fui quase-grande. Você vai ser grande de verdade. Você vai ser pra valer. Eu sei que ainda não te ensinei a jogar, eu sei que essa é a tua primeira vez, Jesus, Jim, relaxe, eu sei. Isso não afeta minha previsão. Você irá me superar e obliterar. Hoje você está começando, e dentro de alguns poucos anos eu sei muito bem que você será capaz de ganhar de mim, e nesse dia pode ser até que eu chore. Por causa de um orgulho altruísta, a alegria terrível de um pai aniquilado. Eu sinto, Jim, mesmo aqui, parado no cascalho quente e olhando: eu vejo nesses olhos a apreciação do ângulo, uma clarividência a respeito da rotação, a maneira com que você ajusta seu largo e desajeitado corpo de criança de forma que esteja na linha de melhor força contra prato, colher, raspador de lentes, o dobrar tenso de um livro grande. Você faz isso inconscientemente. Você nem faz ideia. Mas eu observo bem, bem de perto. Não vá nunca pensar que eu não observo, filho.

Você será poesia em movimento, Jim, apesar do tamanho e da postura e tudo mais. Não deixe que o problema de postura te engane quanto ao seu potencial verdadeiro na quadra. Acredite em mim, pra variar. O truque consiste em transcender essa tua cabeça grande, filho. Aprender a se mover da mesma exata maneira com que você se senta imóvel. Vivendo no seu corpo.

Esta é a nossa garagem, filho. E este é nosso portão de garagem. Eu sei que você sabe. Eu sei que você já olhou para ele inúmeras vezes antes. Agora… agora enxergue-o, Jim. Enxergue-o como um corpo. A cor besta da alça, a tranca, os pedaços de insetos que ficaram presos debaixo da tinta fresca e ainda estão lá. As rachaduras do sol impiedoso. A cor original? Quem é que vai saber, filhôu…? Os quadrados côncavos recortados, quantos, em quantos níveis nas bordas, que se fazem passar por decoração. Conte os quadrados, talvez… Vamos ver você tratar essa porta como uma dama, filho. Girando a tranca no sentido do relógio com uma mão, isso, e… acho que você vai ter que puxar mais forte, Jim. Acho que mais forte ainda. Me deixe… Assim é que ela quer, Jim. Dê uma olhada. Jim, é aqui que guardamos este Mercury Montclair 1965 que você conhece tão bem. Este Mercury Montclair pesa 1.700 quilos, mais ou menos. Tem oito cilindros e pára-brisa emoldurado e aletas aerodinâmicas, Jim, e tem velocidade máxima na estrada de 150Km/h. Eu descrevi o tom da pintura desse Montclair pro vendedor a primeira vez que o vi como vermelho de lábio mordido. Jim, é uma máquina. Vai fazer o que foi feita pra fazer e vai fazê-lo perfeitamente, mas apenas quando estimulada por alguém que tenha se comprometido a conhecer os truques e juntas do seu corpo. O estimulador deste carro deve conhecer o carro, Jim, senti-lo, estar muito mais dentro dele que… que o porta-luvas. É um objeto, Jim, um corpo, mas não deixe que ele o engane, parado ali, mudo. Ele responderá. Se receber sua parte. Com cuidado exímio. É um corpo e responderá com um ronronar bem-oleado assim que eu puser um pouco de óleo decente nele, todo Mercuryal a centoecinquentão pro motorista que tratar seu corpo como ao dele próprio, que sinta o grande corpo de aço no qual se encontra, que tranquilamente, sem perceber, sinta o plástico áspero da alavanca de câmbio perto do volante ao mudar a marcha como sente a pele e carne, o músculo e o tendão e o osso cobertos com uma teia de aranha cinzenta de nervos na mão repleta de sangue da mesma forma que sente o plástico e o metal e juntas e dentes, os pistões e borracha e cabeçotes do Montclair de combustível âmbar quando muda a marcha. O vermelho corpóreo de lábio mordido, arfando por aí a mais de 100. Jim, um brinde ao nosso conhecimento sobre corpos. Ao tênis de alto-nível na estrada da vida. Ah. Oh.

Filho, você tem dez anos, e isso é má notícia pra alguém da sua idade, mesmo que tenha 1,80m e seja uma possível aberração da glândula pituitária. Filho, você é um corpo, filho. Aquela mente rápida de prodígio científico da qual ela tanto se orgulha e sobre a qual não se cansa de tagarelar: filho, são só espasmos neurais, aqueles pensamentos em sua cabeça são só o som de sua cabeça acelerando, e a cabeça ainda é só corpo, Jim. Guarde na memória. Cabeça é corpo. Jim, me abrace um pouco pra ouvir a má notícia, nos seus dez anos: você é uma máquina um corpo um objeto, Jim, não menos objeto que este rutilante Montclair, esse rolo de mangueira ou aquele ancinho lá no jardim da frente ou bom Jesus essa aranha gorda e nojenta se movendo na teia perto do cabo do ancinho, vê? Vê? Latrodectus mactans, Jim. Viúva. Pegue essa raquete e mova-se graciosamente e com tato até lá e mate aquela viúva pra mim, jovem senhor Jim. Vai. Faça-a dizer “Ksh”. Não peça nomes. Grande garoto. Um brinde a uma seção desaranhada da nossa garagem. Ah.

Corpos corpos por toda parte. Uma bola de tênis é o corpo definitivo, garoto. Estamos chegando ao ponto crucial do que eu tenho que passar pra você antes de sairmos e começarmos a trabalhar esse teu potencial temível. Jim, uma bola de tênis é o corpo definitivo. Perfeitamente redonda. Distribuição homogênea de massa. Mas vazia por dentro, completamente um vácuo. Suscetível a impulso, rotação, força – mal ou bem empregada. Ela refletirá seu próprio caráter. Ela própria sem nenhum. Puro potencial. Dê uma olhada numa bola. Pegue uma bola do baldinho verde de plástico barato cheio de bolas usadas perto das tochas de propano, que eu uso pra praticar um saque aqui e ali, Jimbo. Aí garoto. Agora olhe para a bola. Levante-a. Sinta o peso. Aqui, eu vou… abrir… a bola. Ufa. Vê? Nada aqui a não ser ar evacuado que cheira como um inferno de borracha. Vazio. Puro potencial. Note que eu abri a bola ao longo da costura. É um corpo. Você aprenderá a tratá-la com consideração, filho, alguns diriam um tipo de amor, e ela se abrirá pra você, cumprirá suas ordens, ao seu menor gesto de amante chamando suave. O que tenistas verdadeiramente grandes com corpos robustos têm que os faz superar todos os outros, o que eles têm é um jeito com a bola que é chamado, e tenha em mente o portão da garagem e o forno, toque. Toque a bola. Ah, esse… esse é o toque de um grande jogador na mosca. E da mesma forma será com esse corpo grande, fino, torto e alto demais, senhor Jimbo. Eu prevejo bem aqui. Eu vejo o jeito que você aplicará as lições de hoje em você mesmo enquanto corpo físico.

Nunca mais carregando sua cabeça no nível do peito sobre ombros caídos. Nada de tropeçar. Nada de impulsos exagerados, pratos quebrados, abajures entortados, ombros pensos ou peito encavado, os objetos mais simples girando e resistindo em suas mãozonas finas, rapaz. Imagine como deve ser ser essa bola, Jim. Fisicalidade total. Sem cabeça pra acelerar. Completa presença. Potencial absoluto, paradinha potencialmente absoluta em sua grande e pálida mão de menina, tão jovem que o dedão nem rugas tem na junta. Meu dedão tem rugas na junta, Jim, é todo estropiado. Dê uma olhada nesse dedão aqui. Mas eu ainda o trato como meu. Eu dou o que ele merece.

Quer um gole, filho? Eu acho que você já está pronto prum golinho. Não? Nein? Hoje, Lição Um lá fora, você vai se tornar, pro bem ou pro mal, Jim, um homem. Um jogador. Um corpo em comércio com outros corpos. Um timoneiro ao timão da tua própria nave. Uma máquina no fantasma, por assim dizer. Ah. Um cidadão quatro-olhos de dez anos com gravatinha borboleta e escandalosamente alto… Eu bebo, às vezes, quando não estou mesmo trabalhando, para me ajudar a aceitar as coisas doloridas cujo tempo de te contar chegou, filho. Jim. Está pronto? Eu estou te contando isso agora porque você tem que saber o que estou prestes a te contar se quiser ser mais que o quase-grande tenista que você se tornará de qualquer forma em breve. Segure-se. Filho, prepare-se. É glo… gloriosamente dolorido. Prove só um pouquinho, talvez? Este fresco é de prata. Trate-o com o cuidado devido. Sinta sua forma. O quase macio morno da prata, o couro que envolve metade de sua extensão prateada delgada. Um objeto que merece um toque respeitoso. Sente o quentinho escorregadio? Óleo dos meus dedos. Meu óleo, Jim, do meu corpo. Minha mão não, filho, sinta o frasco. Levante-o. Conheça-o. É um objeto. Um vaso. É um frasco de 200ml cheio de líquido âmbar. Pela metade, aliás, parece. Parece. Este frasco foi tratado com o cuidado devido. Nunca foi derrubado, empurrado ou socado. Nunca uma gota foi derramada dele, nem uma. Eu o trato como se ele pudesse sentir. Eu dou o que ele merece, enquanto corpo. Desatarraxe a tampa. Segure a capa de couro em sua mão direita e use sua mão esquerda livre para sentir a forma da tampa e tocá-la em seus sulcos. Filho… filho, você vai ter que pôr de lado o que é isso esse Guia Columbia de Índices Refratários Segunda Edição, filho. Parece muito pesado, mesmo. Um escangalhador de tendões. Vai foder seu pronator teres e tendões adjacentes antes mesmo que você comece. Você vai ter que pôr o livro de lado dessa vez, jovem Senhor Jimbo, nunca tente lidar com dois objetos ao mesmo tempo sem ter eras de prática esforçada e cuidadosa, como o Brando com sua dis… e ora, não, não se joga o livro, filho, não se deixa simplesmente cair o grande Guia de Índices no chão empoeirado da garagem, fazendo levantar um quadrado de poeira que vai sujar nossas meias brancas pra esporte antes mesmo de chegarmos à quadra, rapaz, Jesus, eu levo cinco minutos explicando que o segredo para se tornar mesmo que só um jogador em potencial é tratar as coisas com o exato… aqui, me deixe ver isso… que livros não são só derrubados com um baque como garrafas de vidro numa lata de lixo, eles são colocados, guiados, com os sentidos no Máximo, sentindo as bordas, a pressão no assoalhinho dos dedos quando você se ajoelha com o livro, o leve empurrão gasoso do ar no chão poeirento… quando o ar se desloca num quadrado leve que não levanta poeira. Tipo “assiiiimm“, não tipo “assim”. Entendeu? Compreendeu?

Ah não faça assim. Filho, não faça assim. Não vá me ficar todo sensível, filho, quando tudo o que estou tentando fazer é ajudar. Filho, Jim, eu odeio quando você faz isso. Seu queixo desaparece atrás dessa gravatinha quando esse seu beiço dependurado treme assim. Você parece desqueixado, filho, e beiçudo. E essa capa de muco descendo no seu lábio superior, o jeito que brilha, não, não, é nojento, filho, você não quer enojar as pessoas, você tem que aprender a controlar essa sua ultrasensibilidade a más notícias, se esforce e exerça alguma droga de controle, esse é o ponto que estou tentando a manhã inteira, deixando de ensaiar, com não um só mas dois testes vitais prontos pra pular no meu pescoço, te mostrar, aqui planejando quem sabe deixar você afastar o banco do carro e tocar o câmbio e talvez até… talvez até dirigir o Montclair, sabe Deus se seus pés vão alcançar, hein Jimbo? Jim, ei, que tal dirigir o Montclair? Porque não, a partir de hoje, você nos levar e estacionar perto da quadra onde hoje você vai — aqui, olhe, viu como eu desatarraxei? A tampa? Com a ponta da pontinha macia dos meus dedos estropiados, os quais bem que eu queria que fossem mais firmes, mas eu estou exercendo controle pra controlar minha raiva por causa desse teu queixo e beiço e capa de catarro e o jeito que esses olhos se desviam e se arregalam como olhos de criança mongoloide quando você está ameaçando chorar, mas só com a ponta dos dedos, aqui, as partes mais sensíveis, as partes banhadas com óleo morno, as almofadas intricadas, eu as sinto cantando com nervos e sangue eu as estendo… além do topo até a abertura de cone da tampa onde as guias ao redor da pequena boca circular se escondem enquanto com a outra mão cantando eu gentilmente seguro a capa de couro de forma a sentir o que o frasco sente quando eu guio… guio a tampa por sobre os trilhos de prata, está ouvindo? Pare com isso e escute, está ouvindo isso? O som das linhas se movendo por bem maquinados canais, com grande cuidado, uma suave espiral de barbearia, minha mão inteira dentro da ponta dos dedos, menos… menos desatarraxando, vê, que guiando, persuadindo, lembrando ao corpo da tampa de prata o que é que ela foi feita pra fazer, maquinada pra fazer, a tampa de prata sabe, Jim, eu sei, você sabe, já falamos disso antes, deixe o livro , garoto, ele não vai sair daí, então a tampa deixa os lábios mornos e sulcados da boca do frasco com apenas um “t”, ouviu isso? um “t” do mais fraco possível? Não um arranhão ou som de trituração ou aspereza, não um áspero raspão a la Brando, uma tentativa de dominação, mas um “t”, uma… nuance, pronto, ah, oh, como o inesquecível primeiro “ponk” de uma bola bem pega, Jim, bom, então pegue o livro, se é pra ficar assim de olho esbugalhado e desqueixado, honestamente Jesus porque eu tento e tento, eu só queria te apresentar à garagem do forno e te deixar dirigir, talvez, sentindo o corpo do Montclair, gastando meu tempo pra ir com você te deixar estacionar perto da quadra com a marcha do Montclair planando neutra, os oito cilindros tamborilando e fazendo “t”, “t”, como um coração saudável e as rodas perfeitamente alinhadas com o acostamento, e pegar meu velho e confiável balde de… balde de lavanderia cheio de bolas e raquetes e toalhas e frasco e meu filho, minha carne de minha carne, branca e muxibenta carne de minha carne que queria embarcar numa carreira no tênis que eu vejo agora irá colocar seu pai estropiado e cansado de voltinha no lugarzinho dele, que queria talvez só por um pouco ser um garoto de verdade e aprender a jogar e se divertir e saracotear e brincar à inegociável luz do Sol pela qual esta cidade é tão famosa, que só queria aproveitar enquanto pode porque terá tua mãe te contado que estamos de mudança? Que estamos voltando pra Califórnia esta primavera, afinal? Estamos de mudança, filho, eu estou escutando uma vez mais o chamado de sereia do celuloide, estou fazendo a última tentativa pra valer que a obrigação de um homem a seu último e evanescente talento merece, Jim, a gente vai se dar bem de novo finalmente pela primeira vez desde que ela anunciou que ia ter você, Jim, pé na estrada, com destino ao celuloide, então diga adiós à escola e ao seu professorzinho de física, aquela mariposinha nervosa, e aqueles seus amigos mondrongos desqueixados manuseadores-de-régua-de-cálculo de não agora espere eu não quis dizer o que eu quis dizer foi que eu queria te contar agora, bem antes do tempo, sua mãe e eu, pra que você possa se ajustar desta vez porque oh você demonstrou de maneira inequivocamente clara o quanto você ficou aborrecido com nossa última mudança pra este estacionamento de trailers, não foi, para este lar móvel com banheiro químico e ferrolhos pra manter a porta no lugar e teias de viúva pra onde se olhe e sujeira se acumulando por tudo feito pó ao invés da sede do Clube de onde eu fiz que nos expulsassem, ou a casa que por minha indiscutível culpa já não podíamos bancar. Foi minha culpa. Quer dizer, de quem mais seria? Estou certo? Por termos movido seu corpo grande e macio com um aviso alegadamente não lá muito prévio e aquela escola do lado leste pela qual você chorou e aquele bibliotecário negro com o cabelo até aqui que… a senhora com o nariz arrebitado na ponta dos pezitos o tempo todo eu tenho que dizer ela parecia uma rematada dona do lado leste de Tucson, cheia de si, de material muito puro, nos instando a abre aspas incentivar seu jeito ótico com Física com o narizinho arrebitado dava pra ver lá dentro e na ponta dos pés como se alguma coisa habilidosa por trás dela tivesse enfiado um anzol entre aquelas grandes narinas de salmão espalmadas e estivesse puxando pro alto em direção ao éter aos pouquinhos aposto que aqueles cotocos sem calcanhar estão juntos no ar a essa altura filho o que você diz filho o que você acha… não, vai, chore, não se iniba, eu não vou dizer uma palavra, exceto que está me afetando menos cada vez que você faz isso, só estou te avisando, eu acho que você está abusando com as lágrimas e o… está ficando menos efic… eficaz comigo cada vez que você as usa apesar de sabermos, ambos sabermos, não sabemos, entre você e eu nós sabemos que elas sempre vão funcionar com tua mãe, não vão, nunca falha, ela sempre vai tomar tua cabeçorra e inclinar no ombro, daquele jeito bem obsceno, se você pudesse ver, dando tapinha-tapinha nas tuas costas como se estivesse fazendo arrotar uma criança obscena muito grande e troncha de gravata-borboleta com um livro erodindo seus pronator teres, chorando, você vai fazer isso quando for crescido? Haverá episódios como esse quando você for um homem ao seu próprio timão? Um cidadão de um mundo que não vai ficar de tapinha-tapinha-pronto-pronto? O teu rosto vai se amassar e inchar assim quando você atingir os grotescos dois metros de altura, dois ponto vinte que nem teu avô que ele apodreça no vácuo de borracha do inferno quando finalmente morder raiz e essa cara chata desqueixada que nem ele apoiada no ombro frágil encatarrado úmido e cansado daquela pobre mulher estúpida eu te contei o que ele fez? Eu te contei o que ele fez? Eu tinha a sua idade Jim aqui pegue o frasco não me dê, oh. Oh. Eu tinha treze, e tinha começado a jogar bem, sério, eu tinha doze ou treze e jogava por anos já e ele nunca foi ver, ele nunca foi até onde eu estava jogando pra assistir, nem mudou sua expressão plana uma vez quando eu trouxe pra casa um troféu, eu ganhei troféus, notícias no jornal NATIVO DE TUCSON SE QUALIFICA PRAS NACIONAIS DO CAMPEONATO DE JRs. ele nunca notou que eu existia, não como eu faço com você, Jim, não porque eu tomo cuidado de recuar e me afastar de você bem antes pra te deixar saber que eu te noto e reconheço e estou ciente de você enquanto corpo e me importo com o que possa estar se passando atrás da cara chata inclinada sobre um prisma feito em casa. Ele joga golfe. Seu avô. Vovozinho. Golfe. Um homem do golfe. Meu tom está transmitindo o desprezo? Bilhar numa mesa grande, Jim. Um jogo desincorporado de pancadas espasmódicas e barro voando. Um abre aspas fecha aspas esporte. Fúria anal e boinas xadrez. Está quase vazio. É isso aí, filho. O que me diz da gente cancelar isso. O que me diz de acabar com o sofrimento âmbar deste frasco daí a gente entra e conta pra ela que você não está se sentindo bem de novo e a gente cancela sua primeira introdução ao Jogo até esse fim-de-semana daí no fim-de-semana que vem a gente compensa e faz dois dias seguidos e temos um intensivo realmente extensivo de introdução ao seu ao que parece ilimitado futuro. Gentileza intensiva e cuidado corporal = grande tênis, Jim. Nós iremos dois dias, você vai dar um mergulhão de cabeça e se molhar todo. São só cinco dólares. A hora na quadra. Uma horinha de nada. Todo dia. Cinco dólares por dia. Nem se preocupe. Dez dólares por um fim-de-semana intensivo quando vivemos num trailer metido a besta e temos que compartilhar a garagem com dois DeSotos e o que parece um Modelo A só nos blocos e meu Montclair não pode ter o tipo de óleo que merece. Não olhe assim. O que é o dinheiro em meus ensaios para os testes de cinema por causa dos quais estamos nos mudando 700 milhas aliás, testes que podem muito bem ser a última tentativa do seu velho de atingir uma vida com algum sentido, comparado com meu filho? Certo? Estou certo? Vem cá, garoto. Vemcávemcávemvem. Isso, garoto. Meu J.O.I.2, joia de carinha legal. Meu garoto, em seu corpo.

Ele nunca veio, Jim. Nem uma vez. Assistir. Minha mãe nunca perdeu uma partida competitiva, claro. Minha mãe foi a tantas que parou de significar qualquer coisa. Ela se tornou parte do ambiente. Mães são assim, como eu tenho certeza de que você sabe muito bem, certo? Estou certo? Não veio uma única vez, filhôu. Nunca se arrastou todo torto e penso e projetou sua sombra ultralonga grotesca, visível mesmo ao meio dia, em alguma quadra em que joguei. Até que nesse dia ele veio. Subitamente, uma vez, sem precedente ou aviso, ele… veio. Ah. Oh. Eu o ouvi chegando bem antes de ele aparecer. Ele projetava uma sombra grande, Jim. Era um eventozito local. Era um negócio local de muito pouca consequência no esquema maior das coisas, e ainda bem no comecinho. Eu estava jogando contra um barãozinho da área, do tipo com equipamento bom e roupas brancas com vincos e lições pagas no country-club que nem assim sabe jogar de verdade, sério, nem com todo o apoio. Você descobrirá que frequentemente vai enfrentar esse tipo de adversário nas primeiras partidas. Esse imprestável brilhoso era algum cliente do filho do meu pai… filho de um dos clientes do meu pai. Então ele veio por causa do cliente. Pra exibir alguma paródia de preocupação paterna. Ele usava chapéu e casaco e gravata com 35°. O cliente. Não lembro o nome. Havia algo de canino em seu rosto, eu lembro, que o filho dele do outro lado da rede tinha herdado. Meu pai não estava nem suando. Eu cresci com o sujeito nesta cidade e nem uma vez eu o vi suar, Jim. Ele usava um Panamá e um terno riscado que homens de negócio tinham que usar nos fins-de-semana naquele tempo. Eles se sentavam à sombra de uma palmeira danificada, tipo entupida de viúvas negras, na folhagem, que descem sem aviso, que se quedam esperando ao calor do meio-dia. Eles sentavam no lençol que minha mãe sempre levava — minha mãe, que está morta, e o cliente. Meu pai ficava de lado, às vezes na sombra ondulante, às vezes não, fumando um cigarro de filtro longo. Filtros longos estavam na moda. Ele nunca se sentava no chão. Não no Sudoeste Americano, não. Aquele era um homem com um saudável respeito por aranhas. E nunca sentava ao chão sob uma palmeira. Ele sabia que era grotescamente alto e estabanado demais pra se levantar rapidamente ou rolar gritando pra fora do caminho no caso de aranhas cairem. É sabido que elas têm disposição de cair bem de cima das árvores nas quais se escondem de dia, você sabe. Cair bem em cima de você se você estiver no chão, na sombra. Ele não era bobo, o filhadamãe. Um golfista.

Eles todos assistiam. Eu estava bem lá na primeira quadra. Aquele parque já não existe, Jim. Carros agora estacionam onde ficavam as quadras de asfalto áspero verde, tremeluzindo no calor. Eles estavam bem lá, assistindo, as cabeças indo e voltando daquele jeito limpador de para-brisa que as pessoas fazem quando assistem tênis de alto nível. E estaria eu nervoso, jovem senhor J.O.I.? Com o primeiro e único O Próprio ali em toda a sua dura glória, assistindo, metade dentro e fora da sombra, sem expressão? Não. Eu estava em meu corpo. Meu corpo e eu éramos um. Minha Wilson de madeira da pilha de Wilsons de madeira em suas prensas trapezoidais era uma extensão consciente do meu braço, e eu a sentia cantando em minha mão, e ela estava viva, minha mão bem armada era a secretária da minha mente, delgada e atenciosa e senza errori, porque eu me conhecia enquanto corpo e estava completamente dentro do meu corpinho de criança, Jim, eu estava em meu grande braço direito e em minhas pernas sem cicatrizes, seguramente alojado, correndo daqui para ali, minha cabeça batendo como um coração, suor debulhando em cada membro, correndo como uma criatura das estepes, pulando, saracoteando, rebatendo com a máxima economia e o mínimo esforço, meus olhos na bola e nos cantos da quadra, eu estava dois, três lances à frente de mim e do filho do cliente canino, moendo o barãozinho sem piedade. Era massacre. Era uma cena saída da Natureza em seu estado mais bruto, Jim. Você tinha que ter estado lá. O guri ficava se dobrando pra recuperar fôlego. Meu saracoteio suave e econômico contrastava com a maneira pesada com que ele se via obrigado a pisar e arremessar. A camiseta branca de crochê e os shorts de marca estavam empapados, então dava pra ver a marca do protetor mordendo aquela bundinha de barãozinho suado. Ele usava uma viseira tremelicante branca típica das mulheres de cinquenta e dois anos no country-club e hotéis classudos do Sudoeste. Eu estava, numa palavra, rápido, ponderado, clarividente. Eu o fiz pisar e frear e se jogar. Eu queria humilhá-lo. O rosto longo e agudo do cliente estava caindo. Meu pai não tinha rosto. Escurecido e então iluminado embaixo da sombra ondulante das frondes embaixo das quais metade dele se encontrava, o rosto coroado de fumaça dos filtros longos de que ele gostava, longas piteiras de plástico amareladas no cabo, imitando o Presidente, como cortesãos babujando com o Rei… coberto com sombra e então fumaça acesa. O cliente não conseguia não abrir a boca. Ele achava que estava vendo futebol, só podia. A voz do cliente era trazida. Nossa quadra era perto da árvore em que eles estavam. As pernas do cliente estavam esticadas pra frente, e recortavam-se na estrela da sombra da palmeira. Fios de sombra entrelaçados na calça dele, vindos da cerca atrás da qual o filho dele e eu jogávamos. Ele bebia a limonada que minha mãe tinha trazido pra mim. Ela fazia fresquinha. Ele disse que eu era bom. O cliente do meu pai. Daquele jeito enfático que carregava sua voz. Sabe, filho? Pela madrugada Incandenza cavalo velho mas este teu filho é bom. Fecha aspas. Eu o ouvir dizer enquanto eu corria e rebatia e saracoteava. E eu ouvi a resposta daquele filho da puta alto, depois de uma pausa quando todo o ar do mundo ficou suspenso. Parado no fundo da quadra, ou retornando pro fundo da quadra, um dos dois, eu ouvi o cliente. A voz dele era trazida. E depois eu ouvi a resposta do meu pai que ele apodreça num inverno verde vazio. Eu ouvi o que… o que ele deu por resposta, filito. Mas só depois que eu caí. Eu insisto neste ponto, Jim. Só assim que eu comecei a cair. Jim, eu estava tentando alcançar uma bola fora de alcance mortal, um drop-shot trôpego, cego, do almofadinha de peido do outro lado da rede. Um ponto que eu podia entregar com todo o conforto. Mas não era assim que eu… que um jogador de verdade faz. Com respeito e esforço devido e cuidado por cada ponto. Você quer ser bom, quase-bom, você dá pra cada bola tudo que tem. Aí dá só mais um pouquinho. Não entrega nada. Mesmo contra almofadinhas de peido. Você joga até o seu limite e então ultrapassa o seu limite daí olha pro seu limite antigo e dá tchauzinho ao embarcar. Você entra em transe. Você sente as bordas e costuras de tudo. A quadra vira um… um lugar único pra se estar. Que fará tudo por você. Não deixará nada escapar ao seu corpo. Os objetos se movem do jeito que foram pensados, ao mais suave e leve toque. Você desliza na clara corrente, fazendo X’s e L’s pela superfície verde-áspera de asfalto, seu suor da mesma temperatura de sua pele, jogando com tanta facilidade e esforços totalmente brancos e e e concentração em transe você nem pára pra considerar se vai tentar alcançar cada bola. Você mal sabe que o faz. Seu corpo faz pra você e a quadra e o Jogo estão fazendo isso pelo seu corpo. Você quase nem está envolvido. É mágica, rapaz. Nada chega perto, quando está bom.

Eu prevejo. Fatos e números e vidro curvado e aqueles seus livros escangalha-cotovelo, as páginas sem peso vão parecer chatas em comparação. Estáticas. Mortas e brancas e chatas. Elas nem chegam… é como uma dança, Jim. O que quero dizer é: eu tinha muito respeito corporal pra escorregar e cair daquele jeito. E outra coisa: eu comecei a cair ainda antes de ouvi-lo responder:

“Sim, Mas Ele Nunca Vai Ser Grande”.

O que ele disse de jeito nenhum me fez cair. Meu oponente enjeitadinho tinha empurrado uma bola pífia bem por cima da rede baixa de parquinho público, um acidente bizarro, um drop-shot mal-batido, e outro homem em outra quadra durante outra lavada teria deixado-a entrar, entregando o ponto desnecessário, passando a chance de acenar com um lencinho lá da nau do seu limite. Não foi uma corrida desesperada em oito cilindros sem fôlego em direção à rede pra tentar rebater a bola na primeira quicada. Mas Jim, qualquer um pode escorregar. Eu não sei no que foi que escorreguei, filho. Diziam que havia aranhas infestando as folhas de palmeira ao longo das cercas. Elas descem à noite em fios, bulbosas, se flexionando. Estou achando que bem pode ter sido numa viúva bulbosa repleta de gosma que eu pisei e escorreguei, Jim, uma aranha, uma aranha louca à solta, descida num fio dentro da sombra, rastejando flácida, ou que pulou direto da folhagem de palmeira no alto da quadra, provavelmente fazendo um sonzinho horripilante levemente flácido quando caiu, saracoteando com as patinhas, piscando grotesca na odiada luz quente, e eu pisei ao avançar e matei e escorreguei na nojeira que aquela aranhona escrota fez. Vê estas cicatrizes? Empelotadas, em fiapos, como se algo tivesse me rasgado na altura dos joelhos que nem o Brando trôpego abriria um envelope com os dentes e o deixaria no chão úmido amassado e rasgado? Todas as palmeiras ao longo da cerca estavam doentes, tinham bicho-da-palmeira, era o ano 1933 D.C, da Grande Epidemia de Bicho-da-Palmeira de Bisbee, por todo o Estado, e elas estavam perdendo as folhas e as folhas estavam secas e da cor de azeitonas bem velhas daquelas que ficam em jarrinhos altos lá no fundo da geladeira e porejavam uma secreção purulenta escorregadia e às vezes caíam abruptamente das palmeiras, girando como espadas de papelão de pirata de filme. Deus eu odeio folhagem, Jim. Estou achando que pode ter sido uma latrodectus diurna ou pus de algum galho. Talvez o vento soprasse pus cruento das frondes, pra dentro da quadra, perto da rede. Enfim. Algo venenoso e infectado, com certeza, súbito e liso. Um segundo é o suficiente, você deve achar, Jim: O corpo foge e lá vai você, de joelhos, escorregando numa quadra que faz seus joelhos pensarem em lixa de papel. De jeito nenhum, filho.

Eu tinha outro frasco assim, filho, menor, um frasco de prata mais safo, no porta-luvas do meu Montclair. Tua mãe devota deu sumiço. O assunto nunca foi mencionado entre nós. De jeito nenhum. Foi um corpo alienígena, ou uma substância, não o meu corpo, e se algo traiu algo aquele dia, creia-me você, filhão garoto foi algo que eu fiz, Jimmer, eu posso bem ter traído aquele belo corpinho liso e bronzeado, eu posso bem ter ficado rígido, ultraconsciente, descuidado, escutando o que meu pai, a quem eu respeitava, eu respeitava aquele homem, Jim, isso é o pior, eu sabia que ele estava lá, estava consciente de seu rosto longo e da sombra longa dos filtros, eu o conhecia, Jim. As coisas eram diferentes quando eu era pequeno, Jim. Eu odeio… Jesus eu odeio dizer esse tipo de coisa, tipo esses clichês as-coisas-eram-outras-no-meu-tempo-de-guri, o tipo de clichê que os pais de antigamente falavam, achando que diziam alguma coisa. Mas era. Diferente. Nossos moleques, os moleques da minha geração, eles… agora vocês, esse pessoal pós-Brando, vocês não conseguem gostar ou desgostar de nós, ou respeitar, não, como seres humanos não, Jim. Seus pais. Não, espere, você não precisa fingir discordar, não, não precisa dizer, Jim. Porque eu sei. Eu podia ter previsto, vendo Brando e o Dean e o resto, e eu sei, então pare de babujar. Eu não culpo a idade de vocês, filhôu. Vocês olham pra bondade ou maldade, sobriedade ou alcoolismo, felicidade ou tristeza, grandeza ou quase-grandeza ou fracasso dos pais do mesmo jeito que veem que uma mesa é quadrada ou o vermelho-lábio do Montclair. Esses moleques de hoje em dia, sei lá, não conseguem sentir, muito menos amar, pra não dizer respeitar. Nós somos apenas corpos pra vocês. Nós somos só corpos e ombros e joelhos feridos e barrigas grandes e carteiras vazias e frascos pra vocês. Não estou dizendo nenhum clichê como “eu quero só ver quando não estiver aqui”, apenas afirmando que vocês nem podem… imaginar nossa ausência. Estamos tão presentes que parou de significar algo. Viemos com o ambiente. Mobília do mundo. Jim, eu conseguia imaginar a ausência daquele homem. Jim, eu estou te falando que você não consegue imaginar minha ausência. É minha culpa, Jim, o tempo todo em casa, me arrastando, joelhos ruins, acima do peso, embriagado, arrotando, desdelgado, suado dentro daquele trailer que é um forno, arrotando, peidando, frustrado, triste, derrubando lâmpada, dando impulso demais. Com medo de dar ao meu talento a última oportunidade que ele merece. Talento é a sua própria expectativa, ou você se põe à altura ou ele sacode um lencinho e se afasta pra sempre. Use ou perca, ele costumava dizer por cima do jornal. Eu… só estou com medo de ter um túmulo que diz AQUI JAZ UM VELHO PROMISSOR. É que… algum potencial é pior que nenhum, Jim. Pior que não ter talento nenhum pra se desperdiçar, ficando pelos cantos bebendo por não ter culhão pra… Deus eu eu sinto tanto, Jim, Você não merece me ver assim. Estou tão assustado, Jim. Estou com tanto medo de morrer sem jamais ter sido visto. Dá pra entender? Será que você já é um quatro-olhos torto grande o bastante pra entender? Dá pra ver que eu estava dando tudo que tinha? Que eu estava , no quente, ouvindo, enfeixado em nervos? Um si-mesmo tocando todos os cantos, eu lembro dela dizendo. Eu senti de uma forma que temo que você e sua geração jamais entenderiam. Era menos cair que ser empurrado pra fora de algo, é assim que me lembro.

Não, não aconteceu em câmera lenta. Um minuto eu estava numa corrida pra diante, no próximo havia mãos às minhas costas e nada sob os pés como um empurrão de uma escadaria. Um empurrão seco bem nas costas e meu corpo promissor com todas as teias de nervos pulsando e disparando foi arremessado aos céus e caiu nos meus joelhos esse frasco está vazio bem em cima dos meus joelhos, com todo meu peso e inércia naquela lixa quente escabrosa, subjugado em uma paródia de oração contemplativa, deslizando pra diante. A carne e tecido e osso deixaram faixas gêmeas de marrom vermelho cinza branco como marcas de pneu de substância corporal se estendendo da linha de saque até a rede. Escorreguei em meus joelhos em chamas, passando pela bola trôpega até a rede que me parou. Nos parou. Minha raquete tinha saído girando Jim e meus braços lá ficaram, desraquetados à minha frente, como um monge flagelado em oração. Me foi concedido ouvir meu pai decretar minha existência corporal como nem mesmo potencialmente grande no instante em que arruinei meus joelhos pra sempre, Jim, de forma que anos depois, já na Universidade, eu nunca consegui dar tchauzinho pra nada além da quase-grandeza, do quase-lá, do tá-pertinho, e depois nem pude sonhar em fazer testes praqueles filmes de praia cheios de calções de banho e gel Brylcreem com que aquele pulha do Avalon está enchendo a burra. Eu não estou insistindo em que o veredicto e a queda punitiva estivessem… conectados, Jim. Qualquer um pode escorregar. Tudo que é necessário é um segundo de respeito mal-posicionado. Filho, foi mais que a voz de um pai, sendo trazida. Minha mãe gritou. Foi um momento religioso. Eu aprendi o que é ser um corpo, Jim, apenas carne enrolada numa meia de nylon frouxa, filho, quando eu me ajoelhei e deslizei até a rede esticada, eu visto por mim mesmo quadro-a-quadro, arregaçado. Talvez eu arrote, engasgue, filho, filho, te contando o que aprendi, filho, meu… meu amor, tarde demais, ao deixar a carne dos meus joelhos atrás de mim, eu deslizei e lá fiquei numa postura de súplica sobre os ossos expostos dos meus joelhos com meus dedos desraquetados enganchados na trama da rede enquanto do outro lado o barãozinho ensopado largava sua cara raquete Davis e corria em minha direção com o visor pra cima e as mãos nas bochechas. Meu pai e o cliente para o qual ele estava representando me arrastaram pra sombra infectada da palmeira onde ela se ajoelhou sobre o lençol listrado mordendo a junta do dedo, Jim, e eu senti a religião da fisicalidade aquele dia, não muito mais velho que você, filho, sapatos cheios de sangue, seguro debaixo dos braços por dois corpos grandes como o seu, e arrastado pra fora de uma quadra com duas linhas extras. É um dia religioso, pivotal e seminal, quando lhe é concedido ouvir e sentir o seu destino no mesmo momento, Jim. Eu notei o que tenho certeza você já notou há muito tempo, eu sei, eu sei que você me viu sendo trazido pra casa várias vezes, arrastado pela porta, sob o chamado Efeito, filho, ajudado por taxistas à noite, eu vi sua sombra grotesca projetada do alto da escada pela qual eu paguei, filho: Como os bêbados e feridos são arrastados pra fora da arena como um Cristo desossado, um homem sob cada braço, pés arrastando, olhos no éter.

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¹ – Antes do Patrocínio. No futuro de 1996, data em que o livro foi lançado, os anos terão nome de produtos. A maior parte da história se passa no Ano Da Fralda Geriátrica Depend.
² – James Orin Incandenza.

Infinite Jest e The Pale King na Companhia das Letras

Só para constar. Já foi confirmado pelo André Conti, editor da Cia, que eles vão publicar traduções do IJ e do TPK. O IJ, pelo menos, será traduzido pelo Caetano Galindo.

Forever Overhead (Para sempre em cima)

Breves entrevistas com homens hediondos é, até agora, o único livro do DFW traduzido para o português publicado no Brasil. O conto reproduzido neste post foi extraído do site da Companhia das Letras, em tradução de José Rubens Siqueira.

Reprodução

Para sempre em cima

Tradução de José Rubens Siqueira

Feliz aniversário. Treze anos é muito importante. Talvez seu primeiro dia realmente público. Treze anos é a chance de as pessoas reconhecerem que coisas importantes estão acontecendo com você.
Coisas vêm acontecendo com você faz meio ano. Você agora tem sete pêlos debaixo do braço esquerdo. Doze debaixo do direito. Perigosas espirais duras de grossos pêlos pretos. Pêlos fortes, animais. Agora, em torno das suas partes há mais pêlos duros e crespos do que você consegue contar sem perder a conta. Outras coisas. Sua voz está grossa e rouca e muda de tom sem aviso. Seu rosto começou a ficar brilhante quando você não o lava. E duas semanas de uma dor profunda e assustadora esta última primavera o deixaram com uma coisa pendurada lá de dentro do corpo: seu saco agora está cheio e vulnerável, um bem a ser protegido. Suspenso e preso em um apertado suporte atlético que deixa uma marca vermelha em suas nádegas. Você desenvolveu uma nova fragilidade.
E sonhos. Há meses tem havido sonhos como nunca antes: molhados, movimentados, distantes, cheios de curvas fechadas, pistons furiosos, calor e uma grande queda; e com as pálpebras tremulando você acorda com um ímpeto, um jorro e um tranco de enrolar os dedos do pé e arrepiar os cabelos que vem lá de dentro de tão fundo que você nunca pensou, espasmos de uma dor funda e doce, a luz da rua que entra pela veneziana explodindo em estrelas nítidas no teto preto do quarto e aquela densa geléia branca que chia entre as pernas, escorre e gruda, esfria em cima de você, endurece e fica transparente até não sobrar nada senão os pêlos animais embaraçados e duros no chuveiro de manhã e no emaranhado molhado um cheiro doce e limpo que não dá para acreditar que vem de uma coisa fabricada dentro de você.

O cheiro é, mais que qualquer outra coisa, como esta piscina: clorado salgado e doce, uma flor com pétalas químicas. A piscina tem um forte cheiro azul transparente, embora você saiba que o cheiro nunca é tão forte quando você está mesmo dentro da água azul, como está agora, todo nadado, descansando do lado raso, a água até o quadril lambendo onde está tudo mudado.
Em volta do deque desta velha piscina pública na borda oeste de Tucson há uma cerca Cyclone cor de estanho, decorada com um brilhante emaranhado de bicicletas com cadeado. Mais adiante disso um estacionamento preto quente cheio de faixas brancas e carros cintilantes. Um campo sem graça de grama seca e ervas daninhas duras, cabeças felpudas de dentes-de-leão velhos explodindo e nevando no vento que sobe. E além disso tudo, avermelhadas por um redondo e lento sol de setembro, estão as montanhas, recortadas, os ângulos duros dos picos escurecendo definidos contra o vermelho profundo de uma luz cansada. Contra o vermelho seus duros picos ligados formam uma linha cheia de pontas, um ECG do dia que morre.
As nuvens estão ficando coloridas na borda do céu. A água é de lantejoulas azul-claras, com a mornidão das cinco horas e o cheiro da piscina, como o outro cheiro, se liga a uma neblina química dentro de você, uma penumbra interior que dobra a luz para seus próprios fins, abranda a diferença entre o que termina e o que começa.
Sua festa é hoje à noite. Esta tarde, no seu aniversário, você pediu para vir à piscina. Quis vir sozinho, mas aniversário é um dia familiar, sua família quer estar com você. Isso é bom e você não pode falar por que queria vir sozinho, de verdade verdade mesmo você talvez não quisesse vir sozinho, então eles estão aqui. Tomando sol. Pai e mãe, sol. As espreguiçadeiras deles estiveram marcando o tempo toda a tarde, girando, acompanhando a curva do sol por um céu deserto aquecido até virar uma película como de ovo. Sua irmã joga cabra-cega perto de você no raso com um grupo de meninas magras da classe dela. Está vendada agora, a cabra dela cegada. Está de olhos fechados e girando aos diversos gritos, rodopiando no centro de uma roda de meninas estridentes de touca de banho. Nasceram flores de borracha na touca de sua irmã. São pétalas pink molengas que se sacodem quando ela investe contra o som cego.
Lá do outro lado da piscina ficam o tanque de mergulho e a torre do trampolim alto. Lá no fim do deque fica a LAN HONETE e, dos dois lados, pendurados acima da entrada de cimento para os chuveiros escuros e molhados e os armários, há alto-falantes portáteis de metal cinzento que tocam a música de rádio da piscina, o estrépito rachado e metálico.
Sua família gosta de você. Você é inteligente e quieto, respeitoso com os mais velhos – embora não seja frouxo. Você no geral é bom. Cuida da sua irmãzinha. É aliado dela. Tinha seis anos quando ela tinha zero e estava com caxumba quando a trouxeram para casa em um cobertor amarelo muito macio; você deu um beijo de alô nos pés dela cuidando para ela não pegar sua caxumba. Seus pais dizem que isso foi um bom augúrio. Isso deu o tom. Eles agora sentem que estavam certos. Em tudo se orgulham de você, satisfeitos, e retiraram-se para aquela cálida distância de onde viajam o orgulho e a satisfação. Vocês se dão muito bem.

Feliz aniversário. É um grande dia, grande como o teto de todo o céu do sudoeste. Você pensou bem. Lá está o trampolim alto. Eles vão querer ir embora cedo. Você sobe e faz o que tem de fazer.
Sacode o azul limpo. Está meio desbotado, solto e mole, amaciado, as almofadas dos dedos enrugadas. A névoa do cheiro limpo demais da piscina entra nos olhos; quebra a luz em cores suaves. Você bate na cabeça com o calcanhar da mão. Um lado faz um eco frouxo. Inclina a cabeça de lado e pula – súbito calor na orelha, delicioso, e a água aquecida no cérebro esfria na concha de fora do seu ouvido. Você pode ouvir música metálica mais dura, gritos mais próximos, muito movimento em muita água.
A piscina está lotada para tão tarde. Aqui crianças magras, homens animais peludos. Meninos desproporcionais, inteiros pescoço, pernas e juntas nodosas, peito afundado, vagamente parecidos com pássaros. Como você. Aqui velhos andando no raso com cuidado em cima de pernas finas, sentindo a água com as mãos, fora de todos os elementos ao mesmo tempo.
E meninas-mulheres, mulheres, cheias de curvas como instrumentos ou frutas, pele lustrosa marrom brilhante, os tops dos biquínis presos por delicados nós de frágeis cordões coloridos segurando pesos misteriosos, a parte de baixo montada em suaves saliências de quadris totalmente diferentes dos seus, inchaços e curvas exagerados que derretem em luz num espaço circundante que colhe e acomoda as curvas macias como coisas preciosas. Você quase entende.
A piscina é um sistema em movimento. Aqui agora há: colos, lutas na água, mergulhos, pegador, mergulho-bomba, Peixinho & Tubarão, grandes saltos, cabra-cega (sua irmã ainda está no centro, meio em lágrimas, demorando demais no centro, a brincadeira já beirando a crueldade, você não tem nada com isso, não pode salvar nem atrapalhar). Dois menininhos brancos-brilhantes cobertos com toalhas de algodão correm ao lado da piscina até o guarda paralisar os dois com um grito no alto-falante. O guarda é marrom como uma árvore, pêlos loiros numa linha vertical pela barriga, na cabeça um chapéu de explorador da selva, no nariz um triângulo de creme branco. Uma menina está com o braço em volta de uma perna da torrinha dele. Ele está entediado.
Saia agora e passe por seus pais, que estão tomando sol e lendo, sem levantar a cabeça. Esqueça a toalha. Parar para pegar a toalha quer dizer conversar e conversar quer dizer pensar. Você concluiu que ficar apavorado é resultado principalmente de pensar. Passe direto, para o tanque do lado fundo. Acima do tanque uma grande torre de ferro branco sujo. Uma prancha se projeta do alto da torre como uma língua. O piso de concreto do deque da piscina é áspero e quente contra as solas de seus pés desbotados. Cada pegada que você deixa é mais fina e mais tênue. Atrás de você, cada uma se encolhe na pedra quente e desaparece.

Fileiras de salsichas plásticas bóiam no tanque, que é inteiramente isolado, vazio do balé convulso de cabeças e braços do resto da piscina. O tanque é azul como energia, pequeno, fundo e perfeitamente quadrado, cercado pelos lava-pés, a LAN HONETE, o áspero e quente deque e a sombra tardia e curva da torre e da prancha. O tanque está quieto e parado, liso entre mergulhos.
Há um ritmo nele. Como respiração. Como uma máquina. A fila para o trampolim se curva na direção da escada da torre. A linha avança em sua curva, endireita ao chegar perto da escada. Uma a uma, as pessoas chegam à escada e sobem. Uma a uma, espaçadas pelo bater de corações, chegam à língua da prancha no alto. E uma vez na prancha, param, cada uma exatamente na minúscula pausa de um bater de coração. E as pernas as levam à ponta, onde dão uma espécie de pulinho batendo os pés, os braços curvados adiante como quem descreve alguma coisa circular, total; descem pesadamente sobre a ponta da prancha e fazem com que ela os jogue para cima e para fora.
É uma máquina de cair, linhas de movimento gaguejante em uma doce névoa de cloro tardia. Dá para ver do deque quando elas chegam no frio lençol azul do tanque. Cada queda forma um branco que se empluma e cai sobre si mesmo, se espalha, chia. Então o azul limpo emerge no meio do branco e se espalha como pudim, renovando tudo. O tanque se cura. Três vezes enquanto você vai.
Você está na fila. Olha em torno. Parece entediado. Poucos falam na fila. Todo mundo parece sozinho. A maioria olha a escada, parece entediada. Você e quase todos estão com os braços cruzados, resfriados por um vento de fim de tarde seco que sobe nas constelações de contas cloradas azuis, claras, que cobrem suas costas e ombros. Parece impossível que todo mundo esteja realmente tão entediado. A seu lado o limiar da sombra da torre, a língua negra inclinada da imagem da prancha. O sistema de sombra é imenso, comprido, sai para o lado, ligado à base da torre em um ângulo duro.
Quase todo mundo na fila para a prancha olha a escada. Meninos mais velhos olham os bumbuns de meninas mais velhas quando elas sobem. Os bumbuns estão dentro de pano fino e macio, náilon elástico justo. Os bons bumbuns sobem a escada como pêndulos em líquido, um suave código indecifrável. As pernas das meninas fazem você pensar em gazelas. Parecem entediadas.
Olhe adiante. Olhe através. Você pode ver tão bem. Sua mãe está na espreguiçadeira do deque, lendo, olhos apertados, o rosto voltado para cima para receber luz nas bochechas. Não olhou para ver onde você está. Ela bebe alguma coisa doce de uma lata brilhante. Seu pai está deitado em cima da sua grande barriga, as costas sugerindo uma corcova de baleia, ombros curvados com espirais animais, pele coberta de óleo e empapada vermelha-marrom de sol demais. Sua toalha está pendurada na cadeira e um canto do pano agora se move – sua mãe bateu nela ao espantar uma abelha de mel que gosta do que ela tem dentro da lata. A abelha volta imediatamente, parecendo parar imóvel sobre a lata em um doce borrão. Sua toalha é uma cara grande do Urso Yogi.
Em algum momento tem de haver mais fila atrás de você do que na frente. Ninguém na frente a não ser três na escada estreita. A mulher bem à sua frente está nos primeiros degraus, olhando para cima, com um maiô preto de náilon justo que é uma peça só. Ela sobe. Lá de cima vem um rumor, depois uma grande queda, depois uma pluma e o tanque cicatriza. Agora dois na escada. As regras da piscina dizem um de cada vez na escada, mas o guarda nunca grita por causa disso. O guarda cria as regras de verdade gritando ou não gritando.
Essa mulher acima de você não devia usar maiô tão apertado quanto o maiô que está usando. É tão velha quanto sua mãe e tão grande quanto ela. Ela também é grande e branca demais. O maiô está cheio dela. A parte de trás de suas coxas está apertada pelo maiô e parece queijo. As pernas dela têm abruptos rabisquinhos azuis de veias desfeitas por baixo da pele branca, como se alguma coisa estivesse quebrada, machucada, em suas pernas. As pernas dela parecem doer por causa do aperto, cheias de linhas arábicas curvas de frio azul quebrado. As pernas dela fazem você sentir as suas pernas doendo.

Os degraus são muito estreitos. Isso é inesperado. Finos degraus de ferro redondo cobertos de escorregadio feltro Safe-T molhado. Você sente gosto de metal no cheiro de ferro molhado à sombra. Cada degrau afunda nas solas de seus pés e as marca. As marcas parecem fundas e doem. Você se sente pesado. Como a mulher grande acima de você deve se sentir. Os corrimãos ao longo dos lados da escada também são muito finos. É como se não desse para segurar neles. Você tem de esperar que a mulher também vá segurar. E é claro que de longe pareciam menos degraus. Você não é burro.
Chega a meio caminho, lá no alto, aberto, mulher grande acima de você, um homem sólido musculoso e careca na escada abaixo de seus pés. A prancha ainda lá no alto, invisível daqui. Mas ela estremece e faz um som pesado de bate-e-volta e um menino que você só vê durante uns poucos centímetros contidos entre os finos degraus cai num flash de linha, um joelho dobrado no peito, fazendo um splash. Um grande ponto de exclamação de espuma entra em seu campo de visão, depois se espalha e cai num grande borbulhar. Então o som silencioso do tanque cicatrizando em novo azul outra vez.
Mais degraus finos. Segure bem. O rádio é mais alto aqui, um alto-falante no nível da orelha acima da entrada de concreto do vestiário. Um bafo frio e úmido do interior do vestiário. Agarre forte as barras de ferro e vire, olhe para baixo, para trás, e dá para ver as pessoas comprando salgadinhos e refrigerantes lá embaixo. Dá para ver direitinho lá dentro: o alto branco e limpo do gorro do vendedor, tigelas de sorvete, refrigeradores de latão soltando vapor, tanques comprimidos de xarope de refrigerante, serpentes de mangueira de refrigerante, gordas caixas de pipoca salgada mantida quente ao sol. Agora que está em cima dá para ver a coisa toda.
O vento sopra. Quanto mais alto, mais venta. O vento é fraco: na sombra ele é frio em sua pele molhada. Na escada na sombra sua pele parece muito branca. O vento assobia fininho em seus ouvidos. Mais quatro degraus até o alto da torre. Os degraus machucam seus pés. São finos e você sabe bem quanto pesa. Você pesa de verdade na escada. O chão quer você de volta.
Agora você vê por cima do alto da escada. Pode ver a prancha. A mulher está lá. Ela tem dois montinhos de calosidade vermelha, de aparência dolorida, na parte de trás dos tornozelos. Está parada no começo da prancha e seus olhos nos tornozelos dela. Agora você está acima da sombra da torre. O homem sólido abaixo de você está olhando pelos degraus para o espaço contido por onde a queda da mulher passará.
Ela faz uma pausa de uma pulsação. Não há nada de lento naquilo. Deixa você frio. Num segundo ela está na ponta da prancha, sobe, baixa nela, a prancha se curva como se não quisesse a mulher. Depois se movimenta, volta e a joga violentamente para cima e para fora, os braços dela se abrindo para englobar aquele círculo e foi-se. Ela desaparece em uma piscada escura. E agora um tempo até você ouvir o impacto lá embaixo.
Escute. Não parece bom, o jeito como ela desaparece num tempo que passa antes de ela soar. Como uma pedra caindo num poço. Mas você pensa que ela não achou isso. Ela era parte de um ritmo que exclui o pensamento. E agora você fez de você mesmo parte disso também. O ritmo parece cego. Como formigas. Como uma máquina.
Você conclui que precisa pensar a respeito disso. Afinal, tudo bem fazer uma coisa apavorante sem pensar, mas não quando o apavorante é o não pensar em si. Não quando o não pensar se revela errado. Em algum ponto o erro foi se acumulando cego: tédio fingido, peso, degraus finos, pés doendo, espaço cortado em partes escalonadas que só se fundem em um desaparecimento que leva tempo. O vento na escada algo que ninguém poderia esperar. O jeito como a prancha se projeta da sombra para a luz e não dá para ver além da ponta. Quando tudo acaba sendo diferente você devia pensar. Devia ser exigido.
A escada está cheia abaixo de você. Empilhados, todos separados por alguns degraus. A escada é alimentada pela sólida fila que se estende para trás e curva-se no escuro da sombra em ângulo da torre. As pessoas estão de braços cruzados na fila. Os que estão na escada sentem dor nos pés e estão todos olhando para cima. É uma máquina que só anda para a frente.

Suba para a língua da torre. A prancha se revela longa. Tão longa quanto o tempo que você fica ali parado. O tempo ralenta. Engrossa em torno de você enquanto seu coração aumenta mais e mais as batidas a cada segundo, a cada movimento do sistema da piscina lá embaixo.
A prancha é longa. De onde você está ela parece estender-se para o nada. Vai jogar você em algum lugar que a própria extensão dela o impede de ver, que parece errado aceitar sem sequer pensar.
Olhada por outro lado, a mesma prancha é só uma coisa fina e chata coberta com um negócio plástico branco e áspero. A superfície branca é muito áspera, pintalgada, contornada por um pálido vermelho aguado que mesmo assim é vermelho e não rosa ainda – gotas de água de piscina velha que captam a luz do sol da tarde acima das montanhas duras. O negócio áspero e branco da prancha está molhado. E frio. Seus pés estão doendo por causa dos degraus finos e têm uma grande capacidade de sentir. Eles sentem seu peso. O começo da prancha tem corrimãos de ambos os lados. Não são como os corrimãos da escada eram há pouco. São grossos e colocados muito baixo, de forma que você tem quase de se curvar para se apoiar neles. Estão ali só para se ver, ninguém se apóia neles. Segurar toma tempo e altera o ritmo da máquina.
É uma prancha comprida, áspera e fria de plástico ou fibra de vidro branca, com veias da cor triste do quase rosa de balas ruins.

Mas no fim da prancha branca, na beirada, onde você vai se abaixar com seu peso para fazer ela jogar você longe, existem duas áreas de escuro. Duas sombras chatas na luz ampla. Dois vagos ovais escuros. O fim da prancha tem duas manchas de sujeira.
De todas as pessoas que foram antes de você. Seus pés quando você pára ali estão macios e marcados, doem por causa da superfície áspera e você vê que as duas manchas escuras são da pele das pessoas. São pele raspada dos pés pela violência com que as pessoas de peso real desaparecem. Mais gente do que se pode contar sem perder a conta. O peso e a abrasão de seu desaparecimento deixam pedacinhos de pés macios para trás, pedacinhos, lascas e flocos de pele que são sujos, escurecem e se bronzeiam ao jazer minúsculos e espalhados ao sol no fim da prancha. Eles se empilham, se espalham, se misturam. Eles escurecem em dois círculos.

Fora de você não passa tempo nenhum. É incrível. O balé da tarde lá embaixo é em câmara lenta, os movimentos lá em cima de mímicos em geléia azul. Se quisesse você podia facilmente ficar ali para sempre, vibrando por dentro tão depressa que flutuaria imóvel no tempo, como uma abelha sobre alguma coisa doce.
Mas deviam limpar a prancha. Qualquer pessoa que pense a respeito por um segundo que seja veria que deviam limpar a pele das pessoas do fim da prancha, os dois acúmulos pretos do que restou do antes, manchas que lá de trás parecem olhos, olhos cegos e vesgos.
Onde você está agora é calmo e quieto. Vento rádio gritos água esguichando aqui não. Sem tempo e sem som real a não ser seu sangue guinchando dentro de sua cabeça.
Lá em cima aqui significa visão e olfato. O cheiro é íntimo, recém-clareado. O cheiro da flor especial de cloro, mas dele outras coisas sobem para você como uma neve semeada de pragas. Você sente cheiro de pipoca amarela. Óleo de bronzear doce como óleo de coco. Ou hot dogs ou salsicha empanada. Um tênue vestígio cruel de Pepsi muito escura em copos de papel. E o cheiro especial de toneladas de água vindo de toneladas de pele, subindo como vapor de um banho novo. Calor animal. Lá de cima é mais real que tudo.
Olhe só. Você pode ver a complicação toda, azul, branca, marrom e branca, mergulhada num brilho aquoso de vermelho profundo. Todo mundo. Isso é o que as pessoas chamam de vista. E você sabia que de baixo você não olharia assim tão alto lá em cima. Você agora vê o quanto você está lá em cima. Você sabia que lá de baixo não dava para dizer.
Ele fala atrás de você, os olhos dele nos seus tornozelos, o homem careca sólido, E aí, menino. Eles querem saber. Seus planos aqui em cima são para o dia inteiro ou qual é exatamente a história. E aí, menino, você está bem.
O tempo existiu esse tempo todo. Não dá para matar o tempo com seu coração. Tudo toma tempo. As abelhas têm de se mexer muito depressa para ficar paradas.
E aí menino ele diz E aí menino você está bem.
Flores de metal se abrem na sua língua. Nenhum tempo mais para pensar. Agora que existe tempo você não tem tempo.
E aí.
Lentamente agora, através de tudo, há um olhar que se espalha como os anéis da água atingida. Olhe como se espalha a partir da escada. Sua irmã avistada e o pacotinho branco dela, apontando. Sua mãe olha o raso onde você costumava ficar, depois faz uma viseira com a mão. A baleia se mexe e se sacode. O guarda olha para cima, a menina em volta da perna dele olha para cima, ele pega o megafone.
Para sempre lá embaixo é o deque áspero, salgadinhos, música metálica fina, lá embaixo onde você costumava ficar; a fila é sólida e não tem marcha a ré; e a água, claro, só é macia quando você está dentro dela. Olhe para baixo. Agora ela se mexe ao sol, cheia de duras moedas de luz que brilham vermelhas enquanto somem em uma névoa que é seu próprio sal doce. As moedas racham em luas novas, lascas de luz compridas dos corações de estrelas tristes. O tanque quadrado é um frio lençol azul. Frio é só uma espécie de duro. Uma espécie de cego. Você foi apanhado desprevenido. Feliz aniversário. Você pensou melhor. Sim e não. E aí menino.
Duas manchas pretas, violência, e desaparece em um poço de tempo. Altura não é o problema. Tudo muda quando você volta para baixo. Quando você bate, com seu peso.
Então qual é a mentira? Dura ou mole? Silêncio ou tempo?
A mentira é que é uma ou outra. Uma abelha parada, flutuando, está se mexendo mais depressa do que se pode pensar. Lá de cima a doçura a deixa louca.
A prancha vai abaixar, você irá, olhos de pele podem se cruzar cegos para dentro de um céu manchado de nuvens, perfurações de luz se esvaziando por trás da pedra dura para sempre. Isso é para sempre. Pise na pele e desapareça.
Olá.

Backbone; ou trecho lido na Lannan Foundation

Antes de tudo: a tradução que está sendo reproduzida aqui foi feita pelo Prof. Caetano Waldrigues Galindo, e originalmente postada no site Broomsday (br). O trecho original está disponível em áudio no site da Lannan Foundation e foi publicado na The New Yorker, com o título de Backbone. Possivelmente faça parte do ainda inédito The Pale King.

Capa britânica (reprodução)

 Backbone (espinha dorsal)

Tradução de Caetano Waldrigues Galindo

Toda pessoa plena tem ambições, projetos, objetivos. O objetivo desse menino em particular era tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Os braços até os ombros e a maior parte das pernas, abaixo dos joelhos, foram brincadeira de criança, mas depois dessas áreas de seu corpo a dificuldade aumentou com a abruptude de uma plataforma continental. O menino veio a entender que desafios inconcebíveis esperavam por ele. Ele estava com seis anos de idade.

 Pouco há para se dizer sobre o ímpeto ou causa-motriz do objetivo do menino de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Ele um dia tinha ficado preso em casa, com asma, uma manhã chuvosa e prolongada, aparentemente folheando um pouco do material promocional do pai. A asma era congênita. A área externa do pé, abaixo e em torno do maléolo lateral (o menininho pensava naquela época no maléolo lateral como ‘aquela bolinha esquisita’ no tornozelo) foi a primeira a requerer qualquer contorção mais séria. A estratégia, conforme ele a compreendia, era se dispor no piso acarpetado de seu quarto com a parte interna do joelho no chão e a perna e o pé em um ângulo tão próximo dos noventa graus em relação à coxa quanto ele podia, àquela altura, conseguir, então ele tinha de se inclinar lateralmente tanto quanto pudesse, curvando-se sobre o tornozelo torcido e a parte externa do pé, girando o pescoço para fora e para baixo e se esforçando, com os lábios plenamente estendidos na direção de uma seção da parte externa do pé que ele tinha marcado com um alvo de tinta solúvel, lutando para respirar contra a pressão dextrógira das costelas, esticando-se cada vez mais para o lado, em uma manhã bem cedo, até que sentiu um estalo choco na parte de cima das costas e então uma dor inominável em algum lugar entre a omoplata e a coluna. O menino não gritou mas meramente ficou sentado nessa postura torturada até que o fato de ele não aparecer para o café-da-manhã trouxe seu pai para o andar de cima, à porta do quarto. A dor e a conseqüente dispnéia deixaram o menino fora da escola por mais de um mês. Pode-se apenas imaginar o que um pai pôde pensar de uma lesão como essa em um menino de seis anos.

A quiroprática do pai, a Dra. Kathy, conseguiu aliviar a pior parcela do desconforto. Mais importante, foi a doutora Kathy que apresentou o menino aos conceitos de coluna-como-microcosmo e de higiene espinal e eco postural, incrementalismo e flexão. A doutora Kathy cheirava vagamente a funcho e parecia totalmente aberta e disponível e bondosa. O menino se deitava de bruços em uma mesa alta acolchoada e acomodava o queixo em um copinho. Ela manipulava a cabeça dele muito delicadamente mas de uma maneira que parecia fazer coisas acontecerem por toda a coluna do menino abaixo. As mãos dela eram fortes e macias, e quando apalpava as costas do menino ele sentia como se estivesse fazendo perguntas a ela e as respondendo todas ao mesmo tempo. Ela tinha cartazes nas paredes com vistas ampliadas da coluna humana e dos músculos e fáscias e feixes nervosos que cercavam a espinha e se ligavam a ela. Não havia qualquer pirulito à vista. Os exercícios específicos de alongamento que a doutora Kathy passou para o menino eram para o splenius capitis e longissimus cervicis e as profundas camadas de músculos e nervos que cercavam as vértebras T2 e T3 do menino, que eram o que ele tinha machucado. A doutora Kathy tinha óculos de leitura pendurados em um colar e uma blusa verde de abotoar que parecia ser feita inteiramente de pólen. Você podia ver que ela falava com todos da mesma maneira. Ela instruiu o menino a fazer os exercícios de alongamento todo dia e não deixar que o tédio ou uma redução da sintomologia evitassem que ele realizasse os exercícios reabilitativos de maneira aplicada. Ela disse que a meta a longo prazo não era o alívio do desconforto atual mas a saúde e a higiene neurológicas e uma integridade corporal que ele um dia agradeceria muito, muito mesmo. Para o pai do menino a doutora Kathy receitou um relaxante fitoterápico.

Quase todos os contorcionistas profissionais são na verdade simplesmente pessoas que nasceram com problemas congênitos de atrofia ou distrofia dos grandes recti ou com uma aguda flexão lordótica da coluna lombar, ou ambos. A maioria exibe o sinal de Chvostek ou outras formas de espasticidade ipsilateral. Há muito pouco esforço ou aplicação envolvidos na sua ‘arte’, portanto. Em 1932, estudiosos britânicos do misticismo tamiel documentaram uma pré-adolescente taiwanesa que era capaz de inserir pela boca e no esôfago ambos os braços até o ombro, uma perna até a virilha e a outra perna até logo acima da patela e que assim era capaz de rodopiar sem auxílio sobre o joelho oralmente protrusivo em velocidades superiores a 300 rpm. O fenômeno da suifagia, ou auto-engolimento, foi posteriormente identificado como uma forma rara de paica de inanição causada quase sempre por deficiências radicais de cádmio e/ou zinco.

As regiões internas das coxas do menininho até o entroncamento medial da virilha custaram meses só de preparação. Diariamente, horas consumidas de pernas cruzadas e em postura curvada, lenta e progressivamente alongando as longas fáscias verticais das costas e do pescoço, o spinalis thorasus e o levator scapulae, o iliocostalis lumborum até o sacro e os densos e intransigentes gracilis, pectineus e adductor longus da parte interna da coxa, que se fundem abaixo do triângulo de Scarpa e transmitem uma dor nauseante através do púbis sempre que se excede o limite de flexibilidade. Caso alguém a tivesse visto então, durante essas sessões de duas, três horas, colocando as solas dos pés juntas e puxando-os para dentro para treinar o pectineus, oscilando um pouco e então sustentando uma profunda inclinação com as pernas cruzadas para exercitar a grande e tensa camada de fáscias toraco-lombares que ligavam a sua pélvis à região dorsal, a criança teria parecido ou estar orando ou ser clinicamente autista, ou ambos. Quando os alvos interiores das coxas tinham sido atingidos e tocados com um ou com os dois lábios, as porções superiores da genitália foram simples e foram protrusivamente beijadas e deixadas para trás enquanto já se concebiam os planos para o ílio e a região externa das nádegas. Depois dessas realizações viriam as contorsões mais difíceis, que mais cobrariam do pescoço, necessárias para se atingir as regiões internas das nádegas, o períneo e a parte mais interna da virilha.

O lugar especial em que ele perseguia esse objetivo estranho mas agora recém amadurecido era seu quarto, que tinha um papel de parede com repetidos motivos de floresta. A janela do quarto de segundo andar se abria para uma vista da árvore do quintal. A luz do sol atravessava a árvore em ângulos e intensidades diferentes em diferentes momentos do dia e iluminava partes diferentes do menino que se detinha de pé, sentado, inclinado ou deitado no carpete do quarto se alongando e sustentando posições. O carpete do quarto era de um branco felpudo, com uma aparência polar que o pai não achava que combinasse bem com o esquema repetido das paredes, de tigre, zebra, leão, palmeira. Mas o pai guardava suas opiniões.

O aumento radical do alcance protrusivo dos lábios requer o exercício sistemático das fáscias maxilares, tais como o depressor septi, orbicular oris, depressor anguli oris, depressor labii inferioris e os grupos buccinator, circumoral e risorius. Há um envolvimento superficial de músculos zigomáticos. Práxis: prender barbante a um botão de pelo menos 1,5 cm de diâmetro emprestado da segunda melhor capa de chuva do pai; colocar o botão sobre os dentes frontais superiores e inferiores e cobrir com os lábios; puxar o barbante até sua extensão total em um ângulo de 90º com o plano do rosto e puxar pela ponta com força gradualmente maior, usando os lábios para resistir à força; manter por 20 segundos; repetir; repetir.

Às vezes o pai ficava sentado no chão diante da porta do quarto do menino, com as costas apoiadas na porta. Não é claro se o menino jamais chegou a ouvi-lo procurando escutar ruídos de movimentos dentro do quarto, embora a madeira da porta às vezes fizesse um ruído rangido quando o pai se encostava contra ela ou voltava a se levantar no corredor ou mudava de posição, sentado encostado contra a porta. O menino estava lá dentro se alongando e sustentando posições contorcidas por períodos de tempo extraordinariamente longos. O pai era um homem algo nervoso, com um comportamento apressado, irrequieto, que sempre lhe dava um ar de partida iminente. Tinha diversas atividades empreendedorísticas e estava quase sempre na corrida. O lugar que ele ocupava nos álbuns mentais da maioria das pessoas era provisório, cercado por algo como uma linha pontilhada, a imagem de alguém dizendo algo agradável por sobre o ombro ao se dirigir para a saída. A maioria dos clientes achava que o pai os deixava nervosos. Era ao telefone que ele funcionava melhor.

Aos oito anos de idade, o objetivo de longo prazo daquela criança estava começando a afetar seu desenvolvimento físico. Seus professores perceberam mudanças em sua postura e seu andar. O sorriso do menino, que a essa altura parecia constante por causa dos efeitos da hipertrofia circum-labial na musculatura circum-oral, também parecia incomum. Simultaneamente rígido e extra-amplo, e de certa forma, para usar a avaliação de uma professora de Estudos Sociais, ‘inadequado para a idade’. Fatos: o estigmatista italiano Padre Pio exibiu chagas desprovidas de sangue que lhe atravessam a mão esquerda e os dois pés, centralmente, durante toda a vida. A úmbria santa Verônica Giuliani apresentava chagas em uma das mãos, assim como em seu flanco, que se podia observar abrir, as chagas, e fechar conforme ela ordenasse. A beata do século XVIII Giovanna Solimani permitia que peregrinos inserissem chaves especiais nas chagas de suas mãos e as girassem, o que segundo os relatos facilitava a recuperação daqueles clientes de seu desespero racionalista. Segundo tanto são Boaventura quanto Tomás de Chilano, os estigmas manuais de são Francisco de Assis incluíam massas baculiformes do que parecia ser carne negra endurecida em extrusão a partir dos dois planos volares. Se e quando aplicava-se pressão a um dos assim ditos ‘cravos’ nas palmas das mãos, um pino de carne negra endurecida imediatamente se projetava das costas da mão bem exatamente como se um assim dito cravo real estivesse atravessando a mão. E no entanto, fato: as mãos não têm a massa anatômica necessária para sustentar o peso de um humano adulto. Tanto textos jurídicos romanos quanto o exame contemporâneo de esqueletos do século I confirmam que a crucifixão clássica exigia que os cravos fossem pregados através dos pulsos, não das mãos, da vítima, donde as ‘necessariamente simultâneas verdade e falsidade’ dos estigmas que o teólogo existencialista E. M. Cioran explica em seu Lacrimi si Sfinti, o mesmo trabalho em que se refere ao coração humano como ‘a chaga aberta de Deus.’

Áreas das seções medianas do menino, do umbigo ao processo xifóide na cesura de suas costelas, sozinhas, tomaram dezenove meses de exercícios posturais e de alongamento, alguns dos quais, os mais radicais, devem ter sido insanamente dolorosos. Nesse estágio, os avanços em flexibilidade eram agora sutis a ponto de serem detectáveis apenas com um registro diário extremamente acurado. Certo limites tênseis dos ligamentos da flava, da cápsula e do processo, do pescoço e da parte superior das costas, foram delicada mas persistentemente alongados, o queixo do menino postado na seção mediana do esterno e então deslizando gradualmente para baixo, 1, às vezes 1,5 mm por dia, e essa postura catatônica e/ou meditativa sendo sustentada por uma hora ou mais.

No verão, durante sua rotina do começo da manhã, a árvore diante da janela do menino se enchia de gralhas e fervilhava de gralhas que iam e vinham, então, na medida em que o sol se erguia, a árvore se enchia dos sons ríspidos, rascantes, dos pássaros, que enquanto o menino ficava sentado de pernas cruzadas com o queixo no peito soavam pelo vidro como parafusos enferrujados girando; algo complexamente emperrado que se liberava com um ganido. Além da árvore ficava a perspectiva dos telhados da vizinhança e o hidrante de incêndio e a placa de trânsito de um entroncamento em cruz e os sessenta e quatro telhados idênticos e de águas baixas de um conjunto suburbano depois da rua em cruz e, além do conjunto, bem no horizonte, a orla dos campos de milho verdejantes que começavam nos limites da cidade. No fim do verão o verde dos campos era mais amarelado e depois, no outono, havia apenas o triste restolho e no inverno a terra nua dos campos parecia com nada mais do que aquilo que realmente era.

Um místico bengali conhecido por seus seguidores como Prahran Sahta II passava por períodos de canto meditativo durante os quais seus olhos deixavam as cavidades e ascendiam para flutuar sobre sua cabeça presos apenas por seus ligamentos de dura-mater e então exibiam (os olhos), flutuando por sobre a cabeça do místico, movimentos rotatórios rítmicos estilizados que testemunhas ocidentais descreveram como algo que evocava Shivas dançantes com quatro rostos, serpentes encantadas, hélices genéticas entrelaçadas, as órbitas contrapontísticas em formato de 8 da Via Láctea e da galáxia de Andrômeda em torno uma da outra no perímetro do Grupo Local, ou todas as quatro coisas ao mesmo tempo.

E também jamais se estabeleceu com precisão por que esse menino se devotou a ser capaz de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Não há nem mesmo a clareza de que ele concebesse seu objetivo como uma realização no sentido convencional. Ele não tinha assistido Acredite se Quiser e jamais havia sequer ouvido falar dos irmãos McWhorter. Certamente não se tratava de alguma proeza física ou de auto-evecção. Pelo menos isso foi comprovado. O menino não tinha qualquer desejo consciente de ‘transcender’ alguma coisa. Se alguém tivesse perguntado, o menino teria dito apenas que tinha decidido tocar com os lábios todo e qualquer micrômetro quadrado de seu próprio corpo individual. Ele não teria sido capaz de dizer mais que isso. Conceitos ou concepções de sua própria inacessibilidade física a si mesmo (como somos todos nós inacessíveis a nós mesmos e podemos, por exemplo, tocar com os lábios partes uns dos outros que sequer podemos começar a abordar, labialmente, em nós mesmos) ou da completa determinação do menino de aparentemente atravessar aquele véu de inacessibilidade (de ser de certa forma idiossincrática auto-contido e –suficiente – plenamente disponível para si próprio) estavam além do escopo de sua consciência. Ele era só uma criança. Seus lábios tocaram as aréolas superiores de seus mamilos esquerdo e direito no outono de seu décimo ano. Os lábios a essa altura eram marcadamente grandes e protrusivos. Parte de sua rotina diária eram monótonos exercícios de botão e barbante concebidos para promover a hipertrofia dos músculos orbiculares. A capacidade de estender os lábios em forma de bico em até, aos nove anos de idade, 11.4 centímetros, tinha muitas vezes sido a diferença entre atingir certas partes de seu tórax e não. Foram os músculos orbiculares, mais que qualquer destacado avanço na higiene vertebral, que permitiram que ele acessasse as regiões posteriores do escroto e porções substanciais das dobras entre o escroto e a região interna das coxas antes mesmo de chegar aos nove anos. Essas áreas tinham sido tocadas, marcadas nas cartas anatômicas de quatro lados dentro de seu caderno pessoal e depois lavadas para retirar a tinta e esquecidas. A tendência do menino era de esquecer cada ponto depois de o ter tocado com os lábios como se o estabelecimento de sua acessibilidade tornasse o ponto dali por diante irreal para ele e o ponto agora de certa forma existisse apenas na carta anatômica de quatro faces.

As regiões medianas e superiores de suas costas foram as primeiras grandes áreas de indisponibilidade radical, talvez impossível, a seus próprios lábios, apresentando desafios à flexibilidade e à disciplina que ocuparam uma grande percentagem de sua vida interior na quarta e na quinta séries, e adiante, é claro, como as quedas d’água no fim de um longo rio, ficavam as inconcebíveis perspectivas de alcançar a nuca, os 8 centímetros logo abaixo da ponta mentálica do queixo, a gálea da parte de trás e do topo da cabeça, a testa e a região zigomática, as orelhas, o nariz, os olhos, assim como a paradoxal Ding an sich dos seus próprios lábios, cujo acesso parecia ser como a idéia de pedir a uma lâmina que se cortasse. Esses pontos ocupavam um lugar quase-mítico no plano geral. O menino os reverenciava de forma a colocá-los quase fora do alcance das intenções conscientes. O menino não era por natureza preocupado (ao contrário de si próprio, seu pai pensava) mas a inacessibilidade desses últimos pontos parecia tão radicalmente titânica que era como se a sombra por eles projetada caísse sobre todo o lento progresso na direção da clavícula na frente e da curvatura lombar, por trás, que ocuparam seu décimo-segundo ano vivo, escurecendo todo o projeto. Sombras tenebrosas que o menino escolhia ver como algo que dava à empreitada uma dignidade sombria mais que qualquer espécie de futilidade ou páthos. Ele ainda não sabia como, mas acreditava, ao se aproximar da puberdade, que sua cabeça lhe pertenceria. Ele acharia uma forma de acessar-se todo no fim. Ele tinha nada que alguém jamais pudesse chamar de dúvida, por dentro.

Caetano Waldrigues Galindo é professor de linguística e tradução no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná e é responsável pela nova tradução da obra Ulysses de James Joyce que será lançado em 2012 pela Penguin-Companhia das Letras. Quando o Ulysses for publicado, dependendo do jeito de contar, será algo como o 15º-20º livro de outras pessoas que ele já escreveu.

Informações iniciais

Capa americana (reprodução)

Sinopse do livro, disponível no site da Amazon:

Os agentes do Centro de Examinação da IRS¹ em Peoria, Illinois, parecem suficientemente comuns para o recém chegado trainee David Foster Wallace. Mas enquanto ele imerge em uma rotina tão tediosa e repetitiva que novos empregados recebem treinamento de sobrevivência ao tédio, ele compreende a extraordinária variedade de personalidades atraídas por esse estranho serviço. E ele chega em um momento em que forças dentro da IRS estão tramando para eliminar até mesmo o pouco de humanidade e de dignidade que o trabalho ainda tem.

The Pale King estava inacabado quando David Foster Wallace morreu, mas é um romance profundamente convincente e satisfatório, hilário e destemido e tão original quanto qualquer outra coisa que Wallace já fez. O romance lida diretamente com questões substanciais — questões sobre o significado da vida e os valores do emprego e da sociedade — e tem personagens imaginados com a força interior e a generosidade que eram dons únicos de Wallace. Ao longo do caminho, o livro sugere uma nova ideia de heroismo e impõe infinito respeito por um dos autores mais audaciosos do nosso tempo.

Lançamento: 15/04/2011 (nos EUA).

Nº de páginas: 560.

Do The Howling Fantods:

Situado em um centro de processamento de declarações de imposto da IRS em Illinois em meados dos anos 1980, The Pale King é a história de um grupo de processadores iniciantes e suas tentativas de fazer o seu trabalho frente a um tédio esmagador. “The Pale King deve ser o primeiro romance a transformar contadores e agentes da IRS em heróis”, diz Bonnie Nadell, agente literária de longa data de Wallace. Michael Pietsch, editor da Little, Brown responsável pela publicação de The Pale King, diz: “Wallace toma agonizantes eventos diários como esperar em filas, engarrafamentos e horríveis passeios de ônibus — coisas que todos odiamos — e os transforma em momentos de riso e de compreensão. Mesmo que David não tenha terminado o romance, o livro oferece uma experiência de leitura surpreendentemente completa e satisfatória, que demonstra seus extraordinários talentos imaginativos e sua mistura de comédia e profunda tristeza em cenas da vida cotidiana.”

¹ Internal Revenue Service; análogo a nossa Receita Federal.

Overture

David Foster Wallace (reprodução)

Então: este blog foi criado para tentar compilar informações em português sobre The Pale King, o romance póstumo e inacabado de David Foster Wallace, a ser lançado dia 15/04/2011, nos EUA. Possivelmente será atualizado com informações sobre outros livros do (ou sobre o próprio) DFW, mas não há garantias.

Rodrigo