5 de novembro – Ano da Fralda Geriátrica Depend

Aqui vai outro capítulo do Infinte Jest traduzido & revisado pelo Elton Mesquita. Este texto corresponde às págs. 242 a 258 do IJ. Mais algumas explicações: esta e a outra tradução de capítulos do IJ postadas neste blog foram publicadas pelo Elton Mesquita nos idos de 2004~2005, e foram revisadas por ele em 2011. Ainda: o Infinite Jest está sendo traduzido pelo Caetano Galindo e sairá pela Companhia das Letras em 2013. Os trechos postados aqui servem pra ajudar a divulgar o David Foster Wallace aqui no Brasil, e pro pessoal conhecer um pouco do IJ.

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5 de novembro – Ano da Fralda Geriátrica Depend

Tradução de Elton Mesquita

O telefone transparente soou de algum lugar embaixo do monte de lençóis. Hal estava sentado na borda da cama com uma perna levantada e o queixo apoiado no joelho, cortando as unhas num cesto de lixo afastado a vários metros no meio da sala. Levou quatro toques para achar o telefone em meio aos lençóis e puxar a antena.

‘Mmmalou.’

‘Sr. Incredenza, aqui é da Comissão de Esgoto de Enfield, e falando francamente, já aturamos merda demais do Sr.’

‘Alô Orin.’

‘Como vai, garoto.’

‘Deus, por favor não, por favor O., chega de questões sobre o Separatismo.’

‘Relaxe. Nem pensei nisso. Ligação social. Jogar conversa fora.’

‘Interessante que você tenha ligado agora. Porque eu estou aparando as unhas num cesto de lixo vários metros afastado de mim.’

‘Jesus, você sabe o quanto eu odeio o som de cortador de unha.’

‘Mas eu estou acertando mais de setenta por cento. Os pedacinhos cortados. É impressionante. Me dá vontade de sair e chamar alguém pra ver. Mas eu não quero quebrar o encanto.’

‘A sensação frágil de encantamento daqueles intervalos quando a gente sente que não dá pra perder.’

‘Este é definitivamente um deles. Intervalos de não perder. É que nem aquela sensação mágica naqueles dias raros de jogo. Jogando fora da cabeça, é como DeLint chama. Loach chama de A Zona. Estar n’A Zona. Aqueles dias em que você se sente perfeitamente calibrado.’

‘Coordenado feito Deus.’

‘Algum recesso na forma do ar, do dia, guiando tudo.’

‘Quando você sente como se não pudesse perder mesmo se tentasse.’

‘Eu estou tão afastado que a boca do cesto parece mais uma fenda que um círculo. E mesmo assim lá vão elas, ka-ching ka-ching. Lá se foi outra. Mesmo as que eu erro eu quase acerto, batem na borda.’

‘Eu estou aqui sentado com a perna na banheira de uma terapeuta muscular norueguesa, numa casa estilo rancho 1100 metros acima do nível no mar nas montanhas Superstition. Mesa-Scottsdale está em chamas agora. O banheiro tem painéis de pau-brasil e vista pro abismo. A luz do Sol tem cor de bronze.’

‘Mas você nunca sabe quando a magia vai vir. Você nunca sabe quando o recesso vai se abrir. E quando a magia vem você não quer mudar o mínimo detalhe. Você não sabe que concordância de fatores e variáveis resulta naquela sensação não-dá-pra-eu-errar, e você não quer arruinar a magia tentando descobrir qual seja, mas você não quer mudar sua pegada, sua raquete, seu lado da quadra, seu ângulo de incidência de Sol. Seu coração vai pra garganta a cada vez que você tem que mudar de quadra.’

‘Você começa a parecer um nativo supersticioso. Como é que diz, apascentando o encanto divino.’

‘De repente eu entendo o impulso do deus-te-crie, o sal jogado sobre o ombro e sinais apotropaicos de taberna. De verdade, eu estou com medo de mudar de pé neste instante. Eu estou cortando fora os pedaços de unha menores e ainda aerodinamicamente viáveis, pra prolongar o tempo neste pé, no caso da magia ser uma função do pé. Esse não é nem meu pé bom.’

‘Esses intervalos não-posso-perder fazem de todos nós nativos supersticiosos, Hallie. O jogador de futebol americano profissional é talvez o mais supersticioso nativo de todos os esportes. Por isso toda a almofadaria high-tech e Lycra berrante e complexa terminologia de jogo. A, tipo, tranquilizadora demonstração de alta tecnologia. Porque o nativo de olho esbugalhado está à espreita logo abaixo da superfície, e a gente sabe. O nativo de saia de palha, sacudindo a lança, olho esbugalhado, alimentando Popogatapec com virgens, com medo de aviões.’

‘O novo O.E.D. Discursivo diz que os Ahts de Vancouver costumavam cortar gargantas de virgens e derramar o sangue com bastante cuidado nos orifícios dos corpos embalsamados de ancestrais.’

‘Eu estou ouvindo o cortador. Para com o cortador um segundo.’

‘O telefone não está mais atochado debaixo da minha mandíbula. Eu posso até cortar com uma mão só, segurando o telefone com a outra. Mas ainda é o mesmo pé.’

‘Você não sabe nada de superstição atlética séria até chegar no ranque profissional, Hallie. Quando você chegar no Show aí é que você vai ver primitivismo. Uma boa fase traz o nativo borbulhando pra superfície. Protetores sem lavar, jogo depois de jogo, até ficar de pé sozinhos no compartimento de bagagem do avião. Rituais bizarros para se vestir, comer, mijar.’

‘Micturação.’

‘Imagine um atacante de 200 quilos insistindo em mijar sentado. Nem queira saber o que esposas e namoradas têm que aguentar durante uma dessas ondas não-dá-pra-perder.’

‘Não quero saber de nada sexual.’

‘E tem os jogadores que escrevem exatamente o que eles dizem pra todo mundo antes de um jogo, porque se aquele for um dos jogos não-dá-pra-perder então no próximo eles podem repetir tudo o que disseram pras mesmas pessoas na mesma ordem.’

‘Aparentemente os Ahts enchiam os corpos dos ancestrais com sangue de virgem pra preservar a privacidade de seus estados mentais. O ditado Aht apropriado sendo abre aspas “O fantasma saciado não pode ver coisas secretas”. O O.E.D. Discursivo afirma que esse é um dos mais antigos tratamentos conhecidos contra esquizofrenia.’

‘Ei Hallie?’

‘Depois do funeral, parece que os Quebequianos da região rural de Papineau perfuravam um buraquinho da superfície até a tampa do caixão, pra deixar a alma sair, se ela quisesse sair.’

‘Ei Hallie? Eu acho que estou sendo seguido.’

‘Este é o grande momento. Eu terminei completamente com o pé esquerdo e estou mudando pro pé direito. Este vai ser o grande teste da fragilidade do encantamento.’

‘Eu disse que acho que estou sendo seguido, Hal.’

‘Alguns homens nascem pra liderar, O.’

‘É sério. E a parte esquisita é que —’

‘Que explica porque você está compartilhando isso com seu irmãozinho distante em vez de com alguém cuja credulidade você realmente apreciaria.’

‘A parte esquisita é que eu acho que estou sendo seguido por… aleijados.’

‘Dois em três no pé direito, com um rebote. Não dá pra saber, ainda.’

‘Pare com isso um segundo. Eu não estou brincando. Que nem no outro dia. Eu começo a conversar com uma Situação na fila do correio. E noto um sujeito numa cadeira de rodas atrás da gente. Nada demais. Você está ouvindo?’

‘O que você foi fazer no correio? Você odeia correio normal. E o Mario diz que você parou de enviar os formulários preenchidos pra Mamis já faz dois anos.’

‘Mas então a conversação vai bem, Estratégias de Sedução 12 e 16 são empregadas, sobre as quais eu vou te falar qualquer hora dessas. O que acontece é que a Situação e eu saímos juntos, nos entrosando, e aí tem outro cara numa cadeira de rodas esculpindo num pedacinho de madeira com um canivete à sombra do toldo de uma loja no fim da rua. OK. Até aqui nada está necessariamente acontecendo. Mas agora a Situação e eu nos dirigimos pro trailer dela —’

‘Phoenix tem parques de trailers? Não aqueles trailers prateados de metal…?’
‘Então mas nós saímos do carro, e do outro lado do estacionamento tem outro cara numa cadeira de rodas tentando manobrar, sem muito sucesso.’

‘O Arizona não está repleto de velhos e enfermos?’

‘Mas nenhum desses aleijados era velho. E todos eram fortes demais pra caras em cadeiras de roda. E três numa hora, eu achei, é meio forçar a barra.’

‘Eu sempre imagino seus pequenos encontros em cenários mais domésticos, em bairros nobres. Ou motéis gigantes com camas de formato exótico. Mulheres em trailers de metal têm ao menos filhos pequenos?’

‘Esta tinha pequeninas gêmeas muito lindas que ficaram brincando com bloquinhos o tempo todo.’

‘Me toca o velho coração, O.’

‘E mas então eu levanto acampamento do trailer tipo um número x de horas depois, e o cara ainda está lá, atolado no barro. E à distância eu jurava que ele estava usando algum tipo de máscara com capuz. E agora pra onde quer que eu vá pelos últimos dias parece haver um número estatisticamente improvável de pessoas em cadeiras de roda na área, espreitando, assim um pouco relaxadas demais.’

‘Fãs muito tímidos, talvez? Algum clube de pessoas com problemas nas pernas, obcecadas daquele jeito tímido de fã com uma das primeiras figuras do esporte Norte-Americano em que as pessoas pensam quando pensam na palavra perna?’

‘Provavelmente sou eu imaginando. Um pássaro morto caiu na minha hidro.’

‘Mas deixe eu te perguntar umas duas coisas.’

‘Nem foi por causa disso que eu liguei, aliás.’

‘Mas você mencionou parques de trailers e trailers. Eu preciso confirmar algumas suspeitas — dois pontos, lá dentro, ka-ching. Já que nunca estive num trailer, e que até o O.E.D Discursivo tem uma lacuna no que se refere a trailers de parque de trailers.’

‘E este é o suposto membro não-pancada da família pra quem eu arranjo de ligar. É esse quem eu me dirijo.’

‘Seria a quem, eu acho. Mas esse trailer. Esse trailer da mulher que você conheceu. Confirme ou negue o seguinte. O carpete vai de parede a parede e é extremamente fino, meio amarelo queimado ou laranja.’

‘Sim.’

‘A sala ou sei lá covil continha alguns ou todos dos seguintes itens: Uma pintura de veludo negra retratando um animal; Um diorama videofônico em uma prateleira de bibelôs; Um trabalho de bordado com algum dizer bíblico raso; pelo menos uma peça de mobília revestida de chita com paninhos pra proteger; um cinzeiro com filtro de ar Sai-Fumaça; Os Reader’s Digests dos últimos dois anos, bonitinhamente organizados em seu rackzinho especial para revistas.’

‘Pintura de veludo de um leopardo confere, sofá com guardanapinhos nos braços confere, cinzeiro confere. Nada de Reader’s Digests. Isso não é engraçado, Hallie. A Mamis transparece em você nessas horas.’

‘Última. O nome da pessoa do trailer. Jean. May. Nora. Vera. Nora-Jean ou Vera-May.’

‘…’

‘Foi essa a pergunta.’

‘Eu acho que vou ter que te dizer depois.’

‘Rapaz, você escreve romance com r minúsculo, hein.’

‘Mas eu estou ligando porque —’

‘Ainda não está claro se a frágil magia do não-posso-perder ainda está em ação no pé direito. Estou em sete pra nove, mas há uma sensação diferente de, de alguma forma, estar deliberadamente tentando acertar.’

‘Hallie, tem uma pessoa da porra da revista Moment aqui trabalhando num aspas perfil ameno.’

‘Tem o quê?’

‘Uma matéria de interesse humano. Em mim, como humano. A Moment não cobre esportes de impacto, diz a mulher. Eles são mais pra perfil de personalidades, de interesse humano. É prum negócio chamado aspas Pessoas de Agora, uma seção da revista.’

‘A Moment é uma revista de boca de caixa de supermercado. Fica junto dos cigarros e chicletes. A Alice Moore Lateral lê a Moment. Tem um monte na sala de espera de C.T. Eles fizeram uma matéria sobre aquele menino cego de Illinois que o Thorp achou ótima.’

‘Hal.’

‘Eu acho que a Alice Lateral fica um monte de tempo em filas de caixa no supermercado, o que pensando bem é quase o ambiente ideal para ela.’

‘Hal.’

‘… Já que ela só se locomove de lado.’

‘Hallie, essa garota fisicamente imponente da Moment está fazendo um monte de perguntas amenas sobre o histórico da família.’

‘Ela quer saber sobre O Próprio?’

‘Todo mundo. Você, o Cegonha Louca, a Mamis. Está ficando claro pra mim que vai ser uma espécie de memorial ao Cegonha enquanto patriarca, os talentos e triunfos analisados como algum tipo de tributo refratário à carreira do El Cegoño.’

‘Você dizia que ele projetava uma sombra grande.’

‘Claro e meu primeiro pensamento é mandar ela ir lamber macaco. Mas a Moment está em contato com o time. O escritório central deixou claro que um perfil ameno seria positivo para o time. O Estádio Cardinal não está digamos gemendo sob o peso dos fãs, independente da boa fase. Eu pensei também em mandar ela pro Bain, deixar o Bain babujar pra ela ou responder via carta; só pra analisar as sentenças ela levaria um mês.’

‘Uma fêmea. Não é a típica Situação do Orin. Uma jornalista durona, ágil, talvez até sem criança pequena, direto de Nova Iorrrque num voo noturno. E você disse imponente.’

‘Não tão dura ou forte, mas fisicamente imponente. Grande mas nada broxante. Mulher e meia pra todo lado.’

‘Uma garota que domina o espaço de qualquer trailer.’

‘Chega de trailerismos.’

‘O tom tenso sou eu tentando falar e apanhar unhas do pé do chão ao mesmo tempo.’

‘Ela é imune à maioria das distrações conversacionais.’

‘Você teme estar perdendo o jeito. Uma mulher e meia imune.’

‘Eu disse distração, não sedução.’

‘Você meio que sabiamente evita qualquer fêmea que você suspeita que possa arrebentar com você se chegasse a esse ponto.’

‘Ela é mais imponente que nossos zagueiros. Mas estranhamente sexy. Os atacantes estão loucos. Os tackles ficam fazendo piada se ela não estaria a fim de ver um perfil duro.’

‘Esperemos que o estilo dela seja melhor que o de quem fez aquela matéria de interesse humano sobre o garotinho cego ano passado. Você pegou dela esse seu novo medo de aleijados?’

‘Escute. Você mais que qualquer um deveria saber que eu não tenho intenção de responder direito a nenhuma pergunta tipo roupa-suja-da-família, muito menos pra alguém que estenografa. Tendo atrativos físicos ou não.’

‘Você e o tênis, você e os Saints, O Próprio e o tênis, a Mamis e Quebec e Royal Victoria, a Mamis e a imigração, O Próprio e a anulação, O Próprio e Lyle, O Próprio e espíritos destilados, O Próprio matando a si próprio, você e Joelle, O Próprio e Joelle, a Mamis e C.T, você vs. a Mamis, A A.T.E., filmes inexistentes etc.’

‘Mas você vê o que eu pensei. Como evitar ser direto com respeito às coisas do Cegonha se eu não sei quais são as respostas diretas?’

‘Todos disseram que você ainda se arrependeria de não ter ido ao funeral. Mas acho que não queriam dizer desse jeito.’

‘Por exemplo o Cegonha se apagou antes de C.T. se mudar pro andar de cima no HmH? Ou depois?’

‘Você me pergunta?’

‘Não torne isso escabroso.’

‘Eu nem sonharia em tentar.’

‘…’

‘Imediatamente antes. Dois, três dias antes. C.T. tinha o que é agora a sala de DeLint perto da do Schtitt, no Com-Ad’.
‘E o papai sabia que eles eram…?’

‘Muito íntimos? Eu não sei, O.’

‘Você não sabe?’

‘Mario talvez saiba. Você não gostaria de roer esse osso com o Dodói, O.?’

‘Não faça assim, Hallie. E o papai… o Cegonha Louca pôs a cabeça no forno?’

‘No microondas, O. O microondas de rotisserie perto da geladeira, ao lado do freezer, perto do balcão, debaixo do gabinete com os pratos e vasilhas à esquerda da geladeira de quem olha pra geladeira.’

‘Um forno de microondas.’

‘Dá no mesmo, O.’

‘Ninguém disse microondas.’

‘Foi mencionado no funeral.’

‘Olha, eu já entendi, se você não percebeu.’

‘…’

‘Então onde ele foi encontrado?’

‘20 de 28 é o quê, 65%?’

‘Não é como se fosse tudo que —’

‘O microondas estava na cozinha eu já expliquei, O.’

‘Certo.’

‘Certo.’

‘Então Ok certo, quem você diria que fala mais do cara, mantém a memória dele viva, verbalmente: você, C.T. ou a Mamis?’

‘Acho que dá empate triplo.’

‘Então nunca. Ninguém fala sobre ele. É tabu.’

‘Mas acho que você está esquecendo de alguém.’

‘Mario fala sobre ele. Sobre aquilo.’

‘Às vezes.’

‘Com o que e/ou quem ele conversa tanto?’

‘Comigo, pra começar, acho.’

‘Então você fala sim sobre aquilo, mas apenas com ele, e só depois que ele começa.’

‘Orin, eu menti. Eu nem comecei o pé direito ainda. Estou amedrontado demais pra mudar meu ângulo de aproximação às unhas. O pé direito está num ângulo completamente diferente. Temo que a magia dependa do pé esquerdo. Estou que nem o seu atacante supersticioso. Quebrei o encanto falando sobre isso. Agora estou consciente e com medo. Estou sentado aqui na beira da cama com meu joelho direito debaixo do queixo, parado, estudando o pé paralisado com terror aborígene. E mentindo a respeito pro meu próprio irmão.’

‘Posso perguntar quem foi que o encontrou? O que — quem o encontrou no forno?’

‘Encontrado por um certo Harold James Incandenza, treze anos e ficando velho rápido.’

‘Foi você quem o encontrou? Não a Mamis?’

‘Escute, posso perguntar por que esse interesse súbito após quatro anos e 216 dias, depois de dois anos sem ligar?’

‘Já disse que não me sinto confiante para responder às perguntas dessa Helen se eu não tiver uma ideia do que estou omitindo.’

‘Helen.’

‘É por isso.’

‘Ainda estou paralisado, por sinal. A consciência própria que arruína a magia está ficando pior e pior. Por isso que Pemulis e Troeltsch sempre perdem partidas ganhas. O termo padrão é Endurecer. O cortador está posicionado com as lâminas dos dois lados da unha. Eu só não consigo alcançar a inconsciência necessária pra cortar. Talvez tenha sido apanhar as unhas caídas. De repente a cesta parece pequena e distante. Perdi a magia ao falar sobre ela ao invés de apenas ceder. Lançar a unha em direção ao cesto agora parece mais um exercício em telemacria.’

‘Quer dizer telemetria?’

‘Quão embaraçoso. Quando a gente erra, erra tudo.’

‘Escute.’

‘Sabe, porque você não vai em frente e me pergunta quaisquer que sejam as perguntas odientas padrão que você não quer responder. Pode ser sua única chance. Parece que eu não falo muito sobre isso.’

‘Ela estava lá? A G.M.B.D.M.?’

‘Joelle não aparecia desde que vocês dois se separaram. Você sabia disso. O Próprio a encontrou numa filmagem. Aposto que você sabe muito mais sobre o que quer que eles estivessem tentando fazer. Joelle e O Próprio. Então O Próprio desceu pro porão. C.T. já estava fazendo quase toda a administração diária. O Próprio ficou naquele armarinho de pós-produção perto do laboratório por tipo um bom mês. Mario levava comida e… itens de primeira necessidade. Às vezes ele comia com o Lyle. Acho que não voltou ao nível do solo por pelo menos um mês, exceto por uma viagem pra Belmont, pro Mclean’s para uma limpeza e desintoxicação de dois dias. Isso uma semana depois dele ter voltado. Ele pegou um voo pralgum lugar por três dias, então, pelo que me pareceram motivos de negócio. Sobre filmes. Se Lyle não foi com ele Lyle foi pra algum lugar, porque ele não ficou na sala de pesos. Eu sei que Mario não foi com ele e não sabia o que estava acontecendo. Mario não mente. Não ficou claro se ele havia terminado o que quer que estivesse editando. O Próprio. Ele parou de viver no Primeiro de Abril, esse foi o dia pro caso de você não ter certeza. Eu sei que ele não tinha voltado pela hora em que as partidas da tarde tinham começado, porque eu tinha estado perto do laboratório logo depois do almoço e ele ainda não estava lá.’

‘Ele se internou pra desintoxicação. Em março, é isso?’

‘Até a Mamis emergiu e se arriscou a trafegar lá fora, para levá-lo, então eu arriscaria dizer que era bem urgente.’
‘Ele parou com a bebida em Janeiro, Hal. Joelle foi bem clara sobre isso. Ela me ligou mesmo depois de termos concordado em não nos ligar e me falou sobre isso mesmo depois de eu ter dito que não queria saber de nada dele enquanto ela estivesse trabalhando nos filmes dele. Ela disse: nem uma gota em semanas. Foi a condição que ela impôs pra que ele pudesse usá-la no que ele estava criando. Ela disse que ele disse que faria qualquer coisa.’

‘Bem, eu não sei o que te dizer. Por essa época já estava bem difícil saber se ele estava ingerindo algo ou não. Aparentemente depois de um certo ponto isso deixa de fazer diferença.’

‘Ele tinha coisas de filme com ele quando tomou o tal voo? Uma lata de filme? Equipamento?’

‘O., eu não o vi partir e não o vi voltar. Ele não estava por perto durante o horário das partidas, isso eu sei. Freer ganhou de mim rápido e fácil. Foi 4-1 e 4-2, algo assim, e nós fomos os primeiros a terminar. Eu voltei pro HmH pra colocar alguma roupa pra lavar antes do jantar. Isso por volta das 1630. Eu cheguei e notei algo imediatamente.’

‘E o encontrou.’

‘E fui chamar a Mamis, daí mudei de ideia e fui chamar C.T, daí mudei de ideia e fui chamar Lyle, mas a primeira pessoa de autoridade que encontrei foi Schtitt. Que foi irrepreensivelmente rápido e eficiente e ponderado a respeito de tudo e se revelou a pessoa ideal pra eu ter ido chamar em primeiro lugar.’

‘Eu nem sabia que um microondas poderia ser ligado a não ser de porta fechada. Por causa das microondas oscilando lá dentro, e tudo. Eu pensei que existia algum dispositivo tipo porta de geladeira ou proteção contra gravação.’

‘Você parece esquecer a inventividade técnica da pessoa de quem estamos falando.’

‘E você ficou totalmente chocado e traumatizado. Ele foi asfixuado, irradiado e/ou queimado.’

‘Depois nós reconstruímos a cena, e vimos que ele tinha usado uma furadeira circular e uma serra de mão pra cortar um buraco do tamanho da cabeça na porta do forno, e então, depois de ter enfiado a cabeça lá dentro, tinha preenchido o espaço extra ao redor do pescoço com papel alumínio amassado.’

‘Gambiarrinha feia.’

‘Todos são críticos. Aquilo não foi uma empreitada estética.’

‘…’

‘E havia uma grande garrafa de Wild

Turkey cheia pela metade no balcão próximo, e uma grande fita de embrulho pra presente no pescoço.’

‘No pescoço da garrafa.’

‘Depreende-se.’

‘Tipo ele não estava sóbrio de jeito nenhum.’

‘É o que parece, O.’

‘E ele não deixou nota ou testamento em vídeo ou comunicado de nenhum tipo.’

‘O, eu sei que você sabe muito bem que não. Agora você pergunta coisas que eu sei que você sabe, além de criticá-lo e babujar sobre sobriedade quando você não chegou nem perto do local do funeral. Já terminamos com isso? Eu estou com um pé direito com unhas enormes me esperando aqui.’

‘Vocês reconstruíram a cena, você disse.’

‘Também acaba de me ocorrer que tenho que devolver um livro à biblioteca. Eu tinha esquecido completamente. Capou.’

‘”Reconstruíram a cena” no sentido de que a cena quando vocês o encontraram estava meio… desconstruída?’

‘Logo você, O. Você sabe que essa era a palavra que ele odiava mais do que —’

‘Então tá, queimado. Apenas diga. Ele estava muito muito queimado.’

‘…’

‘Não, espere. Asfixuado. O alumínio era pra preservar o vácuo num espaço automaticamente evacuado assim que o magnitron começou a oscilar, gerando as microondas.’

‘Magnitron? O que é que você sabe sobre magnitrons e osciladores? Não é você o meu irmão que tem que ser lembrado de pra qual lado se gira a chave do carro?’

‘Uma coisinha breve com uma Situação que era modelo em feiras de produtos do lar.’

‘…’

‘Era um tipo brutal de modelismo. Ela ficava lá numa plataforma rotativa, usando uma peça única, com uma coxa virada pra dentro e uma mão com a palma pra cima, indicando o utilitário ao lado. Ficava lá sorrindo e girando dia após dia. Ela passava metade da noite balançando, tentando recuperar o equilíbrio.’

‘Essa Situação por acaso te falou como um microondas cozinha?’

‘…’

‘Ou você já por exemplo, digamos, cozinhou uma batata num forno de microondas? Você sabia que é preciso cortar a batata ao meio antes de ligar o forno? Você sabe por quê?’

‘Jesus.’

‘O patologista de campo do D.P.B. disse que o acúmulo de pressão interna foi quase instantâneo e equivalente em kgs/cm a mais de duas bananas de TNT.’

‘Jesus Cristo, Hallie.’

‘Portanto a necessidade de reconstruir a cena.’

‘Jesus.’

‘Não se sinta mal. Não há garantia de que alguém lhe diria isso mesmo que você tivesse aparecido pra cerimônia. Eu por exemplo não estava o tagarela na época. Parece que eu estava demonstrando trauma e choque durante todo o período do funeral. Do que eu me lembro é de muita conversa sussurrada sobre meu bem-estar psíquico. Chegou a um ponto em que eu comecei a gostar de aparecer e sumir de salas só pra saborear as conversas sussurradas parando no meio de uma sentença.’

‘Você deve ter ficado traumatizado pra caralho.’

‘Sua preocupação é apreciada, creia-me.’

‘…’

‘Trauma parece ter sido o consenso. No fim, a Mamis e Rusk tinham começado a consultar os melhores conselheiros de trauma e luto algumas horas após ter acontecido. Eu fui manobrado direto pra dentro de terapia concentrada de trauma e luto. Quatro dias por semana por mais de mês, bem no meio da preparação de abril-maio pra turnê de verão. Eu perdi dois lugares no ranking dos 14 anos por causa de tanto treino que perdi. Eu perdi as qualificatórias de Hard Court e teria perdido Indianápolis se… se eu não tivesse finalmente entendido o processo de luto e trauma.’

‘Mas funcionou. Afinal. A terapia de luto.’

‘A terapia acontecia naquele Edifício Profissional perto da Av. Comm. depois da Sunstrand Plaza, perto do lago, com os tijolos da cor de molho de salada Thousand Island pelo qual passamos quatro dias por semana. Quem iria saber que os melhores profissionais do luto estariam ali no fim da rua.’

‘A Mamis não queria que o processo se desse muito longe da velha teia, estou certo.’

‘Esse conselheiro do luto insistia em que eu o chamasse pelo primeiro nome, que eu já esqueci. Um sujeito forte vermelho enorme com sobrancelhas em um ângulo sinclinal demoníaco e dentes cinzentos bem pequeninos. Sempre com um resto de espirro no bigode. Eu conheci aquele bigode bem. O rosto dele tinha o mesmo tipo de pressão de fluxo sanguíneo que o de C.T. E não vou nem falar das mãos dele.’

‘A Mamis mandou Rusk te manobrar prum profissional top de linha do luto pra não ter que se sentir culpada por ter praticamente serrado ela mesma a porta do forno. Uma de várias manobrinhas de culpa e anticulpa. Ela sempre achou que o Próprio estava fazendo mais que apenas trabalhar com Joelle. Coitado d’O Próprio não tinha olhos pra ninguém mais além da Mamis.’

‘Aquele foi um nó-cego, O., aquele conselheiro do luto. Ele fazia uma sessão com o Rusk parecer um dia no Adriático. Ele não parava: “Como se sentiu, como se sente, como você se sente quando eu pergunto como se sente.”

‘Rusk sempre me lembrou um calouro tateando o sutiã de uma Situação, o jeito que ele puxa e futuca na sua cabeça.’

‘O homem era insaciável e assustador. Aquelas sobrancelhas, a cara de casca de presunto, os olhinhos brandos. Ele jamais virou o rosto ou olhou em outra direção que não a minha. Foram as seis semanas de conversação profissional total mais brutais que alguém pode imaginar.’

‘Com a porra do C.T. já mudando a coleção de sapatos plataforma e perucas fajutas e EscadaMaster pro andar de cima do HmH.’

‘Tudo foi um pesadelo. Eu não conseguia descobrir o que o sujeito queria. Eu fui e digeri tudo da seção de luto da biblioteca de Copley Square. Não em disquete. Livros mesmo. Eu li Kübler-Ross, Hinton. Eu mourejei com Kastenbaum e Kastenbaum. Eu li negócios como Sete Escolhas: Dando os Passos Para Uma Nova Vida Após Perder Alguém Que Você Ama de Elizabeth Harper Neeld, 352 páginas de pura gosma. Eu fui e me apresentei com sintomas perfeitos, direto dos livros, de negação, barganha, raiva, mais negação, depressão. Eu listei minhas sete escolhas e vacilei plausivelmente entre elas. Eu apresentei dados etimológicos sobre a palavra aceitação que iam até Wyclif e Francês langue-d’oc do século XIV. O terapeuta do luto não deu a mínima. Era que nem um daqueles testes finais em pesadelos onde você se prepara imaculadamente e aí você chega lá e todas as questões da prova estão em hindu. Eu até tentei contar pra ele que O Próprio estava um caco e pancreático e fora de Si Próprio metade do tempo enfim, que ele e a Mamis estavam isolados, que nem o trabalho e Wild Turkey adiantavam mais, que ele estava deprimido por causa de algo que ele estava editando que havia saído tão ruim que ele não queria que fosse lançado. Que ter… que o que aconteceu foi provavelmente misericordioso, no final.’

‘O Próprio não sofreu, então. No microondas.’

‘O patologista de campo do D.P.B. que riscou a silhueta de giz ao redor dos sapatos do Próprio no chão disse que dez segundos no máximo. Ele disse que o acúmulo de pressão teria sido quase instantâneo. Daí ele fez um gesto pras paredes da cozinha. Daí ele vomitou. O patologista de campo.’

‘Jesus Cristo, Hallie.’

‘Mas o terapeuta do luto não dava a mínima, não quis nem saber desse ângulo pelo-menos-seu-sofrimento-acabou que Kastenbaum e Kastenbaum disse ser basicamente um sinal brilhante-neon de aceitação verdadeira. O terapeuta de luto lá que nem um monstro Gila. Eu até tentei dizer que eu realmente não sentia nada.’

‘O que era uma ficção.’

‘Claro que era uma ficção. O que eu podia fazer? Eu estava em pânico. Esse cara era um pesadelo. O rosto dele só ficava lá pendurado sobre a mesa como uma lua hipertensa, sem nunca olhar pra outro lado. Com aquele orvalho mucoso no bigode. E nem me pergunte sobre as mãos. Ele foi meu pior pesadelo. Falando em auto-consciência e medo. Ele era uma sumidade da autoridade terapêutica e eu não estava conseguindo dar o que ele queria. Ele deixou bem claro que eu não estava cumprindo as expectativas. Eu nunca tinha falhado em cumprir expectativas antes.’

‘Você era nosso cumpridor de expectativas designado, Hallie, sem dúvida.’

‘E então mas aqui estava um autoridade com as melhores credenciais em molduras por cada cm quadrado das paredes que só ficava sentado e se recusava até a definir quais eram as expectativas. Diga o que você quiser sobre Schtitt e deLint: eles te comunicam o que eles querem de forma clara. Flottman, Chawaf, Prickett, Nwangi, Fentress, Lingley, Pettijohn, Ogilvie, Leith, até a Mamis do jeito dela: eles dizem no primeiro dia de aula o que eles querem de você. Mas aquele filha da pústula: sem jogo.’

‘Você devia estar em choque esse tempo todo, também.’

‘O., ficou pior. Eu perdi peso. Eu não conseguia dormir. Foi quando os pesadelos começaram. Eu comecei a sonhar com um rosto no assoalho. Eu perdi pro Freer de novo, e então pro Coyle. Joguei três sets com Troeltsch. Levei B em duas provas diferentes. Eu não conseguia me concentrar em mais nada. Comecei a ficar obcecado sobre que eu ia levar pau na terapia de luto. Que este profissional ia contar pro Rusk e pro Schtitt, pro C.T. e pra Mamis que eu não consegui cumprir as expectativas.’

‘Sinto muito por não ter estado lá.’

‘Estranho foi que quanto mais obcecado eu ficava, quão pior eu jogava e dormia, mais feliz todo mundo ficava. O terapeuta do luto me cumprimentou pela minha má aparência. Rusk contou pro deLint que o terapeuta do luto disse pra Mamis que estava começando a funcionar, que eu estava começando a lamentar, mas que seria um processo demorado.’

‘Demorado e caro.’

‘Câmbio. Eu comecei a desesperar. Eu comecei a prever que de alguma forma ficaria preso na terapia de perda, nunca cumprindo as expectativas, nada nunca terminando. Tendo essas interfaces Kafkianas com esse homem dia após dia, semana após semana. Era maio já. O campeonato Continental Clays, no qual no ano anterior eu tinha avançado até a quarta rodada, estava se aproximando, e calmamente ficou claro que todos acreditavam que eu estava num ponto crucial no demorado e caro processo de luto, e que eu não iria com o time para Indianápolis a não ser descobrindo algum modo desesperado de último minuto de cumprir as expectativas desse sujeito. Eu estava completamente desesperado, uma ruína.’

‘Aí você vazou pra sala de pesos. Você e sua testa foram visitar o velho Lyle.’

‘Lyle acabou sendo a solução. Ele estava lá embaixo lendo Folhas de Relva. Ele disse que estava num período Whitman, como parte do processo de luto pel’O Próprio. Eu nunca tinha me aproximado de Lyle antes de forma suplicante alguma, mas ele disse ter dado uma olhada enlutada em minha direção, e depois de me ver malhando que nem louco, porejando um suor gourmet, disse que se sentiu tão tocado por meu sofrimento adicional, além de ter sido o primeiro dos que O Próprio amava a sentir sua falta, que ele faria qualquer esforço cerebral pra me ajudar. Eu me posicionei e o deixei lamber a testa velha e expliquei o que vinha acontecendo e que se eu não descobrisse uma maneira de satisfazer esse profissional do luto eu ia acabar num quarto quieto e macio em algum lugar. A iluminação principal de Lyle foi que eu estava encarando o problema pelo ângulo errado. Eu tinha ido à biblioteca e agido como um estudante do luto. O que eu precisava digerir era a seção de luto para profissionais do luto. Precisava me preparar da perspectiva do profissional do luto. Como eu poderia saber o que um profissional ia querer a não ser que eu soubesse o que ele era requerido por profissão a querer etc. Era simples, ele disse. Eu precisava empatizar com o terapista do luto, Lyle disse, se eu quisesse superá-lo. Era uma reversão tão simples de minha usual preparação para cumprimento de expectativas que não havia me ocorrido nem uma vez, Lyle explicou.’

‘Lyle disse isso tudo? Não parece ele.’

‘Mas uma luz suave apareceu dentro de mim pela primeira vez em semanas. Eu chamei um táxi, ainda de toalha. Pulei pra dentro antes do táxi parar no portão. Eu cheguei a dizer “Pra biblioteca mais próxima com uma seção atualizada de luto e traumaterapia, e pise fundo”. Et cetera et cetera.’

‘O Lyle que minha turma conheceu não era do tipo como-cumprir-expectativas-de-figuras-de-autoridade.’

‘Quando eu fui ao terapeuta no dia seguinte eu era um homem diferente, imaculadamente preparado, inamedrontável. Tudo o que eu temia naquele homem – as sobrancelhas, a música étnica na sala de espera, o olhar implacável, o bigode crocante, os dentinhos cinzentos, até as mãos – terei eu mencionado que este terapeuta do luto escondia as mãos debaixo da mesa todo o tempo?’

‘Mas você superou. Você sofreu ao gosto de todos, é o que você está dizendo.’

‘O que eu fiz foi — eu entrei lá e me apresentei raivoso. Eu acusei o terapeuta do luto de na verdade inibir minha tentativa de processar meu luto, recusando-se a confirmar minha ausência de sentimento. Eu disse a ele que já tinha dito a ele a verdade. Eu usei baixo calão e gíria. Eu disse não dar a mínima se ele era uma figura de autoridade abundantemente credenciada ou não. Eu chamei ele de retardado. Eu perguntei que porra de merda do fodido caralho que ele queria de mim. Meu comportamento geral beirava o paroxismo. Eu disse a ele que tinha dito a ele que não sentia nada, e que era verdade. Eu disse que parecia que ele queria que eu me sentisse toxicamente culpado por não sentir nada. Note que eu estava inserindo sutilmente certos termos profissionais de peso terapêutico como confirmarprocessar como verbo transitivo, e culpa tóxica. Direto da biblioteca.’

‘A diferença toda é que dessa vez você caminhava pela quadra orientado, sabendo onde estavam as linhas, Schtitt diria.’

‘O terapeuta do luto me encorajou a prosseguir com meus sentimentos paroxísmicos, a nomear e honrar minha raiva. Ele ficou mais e mais satisfeito e animado enquanto eu raivosamente dizia que me recusava a sentir um ceitil de culpa de qualquer forma. Eu disse “O quê, queriam que eu tivesse perdido ainda mais rápido pro Freer, pra poder ter chegado em casa a tempo de impedir O Próprio? Não foi minha culpa, eu disse. Não foi minha culpa tê-lo encontrado”, eu gritei; Eu só tinha meias pretas sobrando, era lavanderia de emergência que eu tinha que fazer. A essa altura eu estava batendo no peito com fúria ao dizer que por Deus não tinha sido minha culpa que —’

‘Que o quê?’

‘Foi isso mesmo que o terapeuta do luto disse. A literatura profissional tinha uma seção inteira em negrito sobre Pausas Abruptas No Discurso Com Alta Carga Emotiva. O terapeuta do luto agora estava se inclinando pra frente na altura da cintura. Os lábios dele úmidos. Eu estava na Zona, terapeuticamente falando. Eu me senti por cima pela primeira vez em um longo tempo. Eu desfiz o contato visual com ele. “Que eu estivesse com fome”, eu sussurrei.’

‘O quê?’

‘Foi isso mesmo que ele disse, o terapeuta do luto. Eu murmurei que não era nada, só que com certeza não era culpa minha que eu tivesse reagido como reagi quando passei pela porta da frente do HmH, antes de entrar na cozinha pra descer pro porão e encontrar O Próprio com a cabeça dentro do que sobrou do microondas. Quando eu entrei e ainda estava no vestíbulo tentando tirar os sapatos sem pôr a sacola suja de roupas no carpete branco e pulando e sem poder fazer ideia do que tinha acabado de acontecer. Eu disse que ninguém pode escolher ou controlar os primeiros pensamentos ou reações automáticas quando se entra numa casa. Eu disse que não era minha culpa que a primeira coisa em que eu pensei tivesse sido —’

‘Jesus, moleque, o quê?’

‘ “Que tava um cheirinho gostoso!”, eu gritei. A força do meu berro quase mandou o terapeuta do luto pra trás com cadeira de couro e tudo. Uns diplomas caíram da parede. Eu me curvei em minha cadeira comum como se me preparando pra pouso forçado. Eu pus uma mão em cada têmpora e fiquei balançando pra frente e pra trás na cadeira, chorando. Veio tudo em meio a gritos e soluços. Que eram mais de quatro horas desde o almoço e eu tinha trabalhado duro e jogado duro e estava faminto. Que eu já tinha começado a salivar na hora em que entrei pela porta. Que “Puxa que cheirinho gostoso tinha sido minha primeira reação!”‘

‘Mas você se perdoou.’

‘Eu me absolvi faltando ainda sete minutos de consulta ali sob o olhar aprovador do terapeuta de luto. Ele estava extático. No final, o lado dele da mesa eu juro estava a mais de meio metro do chão, por causa do meu colapso ao pé-da-letra da terapia do luto, que se tornou emoção e trauma genuínos e culpa e lamentação ensurdecedora ao pé-da-letra, e então absolvição.’

‘Cristo de jet-ski, Hallie.’

‘…’

‘Mas você superou tudo. Você lamentou mesmo, então pode me dizer como foi pra eu poder dizer algo assim por alto mas convincente sobre perda e dor pra Helen pra Moment.’

‘Mas eu omiti de alguma forma a coisa mais horripilante sobre esse profissional topo de linha da terapia do luto, que era o fato de que suas mãos nunca ficavam visíveis. O horror daquelas seis semanas de alguma forma se coalesceram ao redor desse tópico, das mãos desse sujeito. As mãos dele nunca emergiam de baixo da sua mesa. Como se os braços terminassem nos cotovelos. Além de análise de material da bigodeira, eu também gastei grande parte de cada sessão tentando imaginar as configurações e atividades daquelas mãos lá embaixo.’

‘Hallie, me deixe só perguntar e eu nunca vou mencionar isso de novo. Você deu a entender há pouco que o que foi especialmente traumático foi que a cabeça d’O Próprio tinha estourado como uma batata inteira.’

‘Então no que acabou sendo o último dia de terapia, o último dia antes de as equipes A serem escolhidas para Indianápolis, depois de eu ter finalmente cumprido as expectativas e minha perda traumática havia sido oficialmente decretada descoberta e estimulada e processada, quando eu pus meu casaco e me preparei para partir, e me aproximei da mesa e estendi a mão de uma maneira grata e trêmula que ele não poderia recusar, e ele se levantou e mostrou a mão e apertou minha mão, eu finalmente entendi.’

‘As mãos dele eram desfiguradas ou algo assim.’

‘As mãos dele não eram maiores que as de uma menininha de quatro anos. Era surreal. Lá estava aquela figura autoritária corpulenta, com uma cara vermelha grande e inchada e bigode grosso de morsa e queixo numa papada que se derramava pra além da borda do colarinho, com mãos que eram pequeninas, rosadas, lisas, macias-bumbum, delicadas feito conchas. As mãos foram a gota. Mal deu tempo de sair do consultório antes que começasse.’

‘A histeria de lembrança catártica pós-traumática. Você se mandou de lá.’

‘Eu mal cheguei ao banheiro masculino no fim do corredor. Eu estava rindo tão histericamente que todos os periodontistas e contadores dos dois lados do banheiro masculino ouviram. Eu sentei na cabine com as mãos na boca, batendo os pés e batendo minha cabeça primeiro contra um lado da cabine depois outro, rindo, numa alegria histérica. Se você tivesse visto aquelas mãos.’

‘Mas você superou tudo, e pode esboçar por alto o sentimento pra mim.’

‘O que eu sinto é que estou juntando forças pro pé direito, finalmente. A sensação mágica está de volta. Eu nem estou alinhando vetores pro cesto, nem nada. Não estou nem pensando. Estou confiando na sensação. É que nem aquele momento em celuloide quando Luke remove o capacete de mira high-tech.’
‘Que capacete?’

‘Você, claro, sabe que unhas humanas são vestígios de garras e chifres. Elas são atávicas, como coccices e cabelo. Que elas se desenvolvem no útero bem antes do córtex cerebral.’

‘E daí?’

‘Que em algum ponto do primeiro trimestre nós perdemos as guelras mas ainda não somos muito além de um saquinho bexiguento de fluido espinhal com uma cauda rudimentar e folículos capilares e pequenos pedacinhos de garra e chifre.’

‘É pra eu me sentir mal? Te fez mal eu perguntar por detalhes depois de tanto tempo? Fez a dor voltar?’

‘Só mais uma confirmação. O interior do trailer. Havia algum objeto ou trio contíguo de objetos com o seguinte esquema de cores: marrom, lavanda e ou verde-menta ou amarelo-narciso.’
‘Eu posso ligar de volta quando você estiver mais tranquilo. A perna está começando a murchar na banheira mesmo.’

‘Eu vou estar bem aqui. Tenho um pé inteiro com o qual me entregar à magia. Não vou alterar o menor detalhe. Estou quase pronto para apertar as lâminas. Vai ser bom, eu sei.’

‘Um cobertor. Como um cobertor afegão, no sofá coberto de chita. O amarelo era mais pro fluorescente que narciso.’

‘E a palavra é asfixiado. Vá chutar algumas bolas com formato de ovo pela gente, O. O próximo som que você vai ouvir vai ser desagradável,’ Hal disse, segurando o telefone ao lado do pé, a expressão terrivelmente intensa.

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