Inverno 1960 A.P.¹- Tucson AZ

Então: o Elton Mesquita traduziu, lá em 2004, dois capítulos do Infinite Jest e postou no blog que ele tinha na época. Eu entrei em contato com ele pedindo permissão pra postar esses capítulos aqui. Ele revisou os textos, e aqui vai o primeiro.

Essa é a tradução do capítulo entre as págs. 157 e 169 do IJ. E é das coisas mais lindas já escritas.
___________

Inverno 1960 A.P.¹- Tucson AZ

Tradução de Elton Mesquita

 

Jim desse jeito não Jim. Isso não é jeito de tratar um portão de garagem, curvando os quadris travados e puxando a alça assim, fazendo o portão pular duro e torto e arrebentando suas canelas e meus joelhos ruins, filho. Quero ver você dobrar esses joelhos bons. Quero ver você pousar a mão suave na alça, sentindo o granulado sutil, e puxar com a exata gentileza pra fazer o portão vir até você. Experimente, Jim. Veja de quanta força você precisa pro portão começar a deslizar, deixe que ele suba nas polias e rolamentos engraxados e ocultos no teto cheio de teias. Pense nos portões de garagem como portas de forno bem oleadas e abertas com carne quente dentro e o calor rolando pra fora. Não precisa, é até perigoso, puxar, sacar, abrir, sacudir. Tua mãe empurra e sacode, filho. Ela trata corpos fora de si sem o respeito ou o cuidado devidos. Ela nunca aprendeu que tratar as coisas da maneira mais gentil e relaxada significa tratar a elas e a seu corpo da forma mais eficiente. Culpa do Marlon Brando, Jim. Tua mãe, antes do teu nascimento, ainda na Califórnia, antes de se tornar uma mãe devota e esposa sofredora e ganha-pão, filho, tua mãe teve um papelzinho num filme do Marlon Brando. O grande momento dela. Ficou lá de sapatilha, meia soquete e rabo de cavalo com as mãos nos ouvidos enquanto motocicletas trovejavam ao fundo. Um grande momento dramático, creia-me você. Ela estava amando esse camarada Marlon Brando à distância, filho. Quem? “Quem”. Jim, Marlon Brando era o arquetípico ator com novo físico que arruína o relacionamento de tipo duas gerações inteiras com seus próprios corpos e com os objetos e corpos do dia-a-dia. Não? Pois é por culpa de Brando que você estava abrindo o portão da garagem daquele jeito, Jimbo. O desrespeito se aprende e é passado adiante. Transferido. Você vai reconhecer Brando quando o vir, e você terá aprendido a temê-lo. Brando, Jim, Jesus, B-r-a-n-d-o. Brando, o novo cara durão arquetípico e amarfanhado, se recostando nas pernas traseiras da cadeira, se chegando todo torto pela porta, trombando com tudo que vê pela frente, tentando dominar os objetos, sem demonstrar respeito ou cuidado, puxando as coisas para si feito criança mimada, usando-as e as jogando fora rudemente, errando a cesta de lixo, deixando-as ali do lado, mal utilizadas. Com os movimentos e a postura desajeitada de uma criança mimada. Tua mãe é daquela nova geração que se move a contrapelo da vida, das empenas e defletores. Ela pode ter amado Marlon Brando, Jim, mas nunca o entendeu, e isso foi o que a estragou para artes cotidianas como fornos e portões de garagem e mesmo partidas ruins de tênis em parques públicos. Cê já viu tua mãe com uma porta de forno? É massacre, Jim, de se contorcer só de ver, e a pobre burrinha pensa que está fazendo um tributo a esse troglodita que ela amou quando ele passava pipocando de moto. Jim, ela nunca intuiu a gentil e sagaz economia por trás do modo abre aspas desajeitado com que ele tratava os objetos. O modo como ele tão oh tão claramente praticava ficar penso nas pernas de trás da cadeira. O modo como ele estudava os objetos com o olhar de soldador à procura das juntas mais fortes e centradas que, quando pressionadas pelo mais grosseiro brutamontes ainda aguentam. Ela nunca… nunca entendeu que Marlon Brando se sentia tão preciso enquanto corpo que nem via necessidade de ter modos. Ela nunca entendeu que em seu modo abre aspas desajeitado, ele na verdade tocava cada objeto como se fosse parte dele próprio. De seu próprio corpo. O mundo que ele aparentemente maltratava era pra ele algo consciente, sensível. E ninguém… e ela nunca entendeu isso. Uvas verdes vírgula. Não dá pra invejar alguém assim. Respeitar, talvez. Talvez respeito de aspirante, no máximo. Ela nunca viu que Brando estava jogando o equivalente a tênis de alto nível em sets de filmagem costa-a-costa, Jim, era o que ele estava fazendo. Jim, ele se movia como um salmãozinho nervoso, um grande músculo, musculosamente ingênuo, mas sempre, note, um salmãozinho no centro de uma corrente clara. Aquele tipo de graça animal. O filhadamãe não desperdiçava um movimento, e transformava seu não-dou-a-mínima em arte. Dele era o lema de jogador de tênis: toque as coisas com consideração e elas serão suas; você as possuirá; elas se moverão ou ficarão imóveis por você; elas se reclinarão e abrirão as pernas e entregarão suas mais íntimas dobras pra você. Te ensinarão todos os seu truques. Ele sabia o que os beats sabem e o que os grandes tenistas sabem: aprenda a fazer nada, com sua cabeça e corpo inteiros, e tudo será feito pelo que está à sua volta. Eu sei que você não entende. Ainda. Eu conheço esse olhar esbugalhado de caixa-d’óculos. Eu sei muito bem o que ele significa, filho. Não interessa. Você vai entender. Jim, eu sei o que sei.

Eu prevejo bem aqui, jovem senhor Jim. Você vai ser um grande tenista. Eu fui quase-grande. Você vai ser grande de verdade. Você vai ser pra valer. Eu sei que ainda não te ensinei a jogar, eu sei que essa é a tua primeira vez, Jesus, Jim, relaxe, eu sei. Isso não afeta minha previsão. Você irá me superar e obliterar. Hoje você está começando, e dentro de alguns poucos anos eu sei muito bem que você será capaz de ganhar de mim, e nesse dia pode ser até que eu chore. Por causa de um orgulho altruísta, a alegria terrível de um pai aniquilado. Eu sinto, Jim, mesmo aqui, parado no cascalho quente e olhando: eu vejo nesses olhos a apreciação do ângulo, uma clarividência a respeito da rotação, a maneira com que você ajusta seu largo e desajeitado corpo de criança de forma que esteja na linha de melhor força contra prato, colher, raspador de lentes, o dobrar tenso de um livro grande. Você faz isso inconscientemente. Você nem faz ideia. Mas eu observo bem, bem de perto. Não vá nunca pensar que eu não observo, filho.

Você será poesia em movimento, Jim, apesar do tamanho e da postura e tudo mais. Não deixe que o problema de postura te engane quanto ao seu potencial verdadeiro na quadra. Acredite em mim, pra variar. O truque consiste em transcender essa tua cabeça grande, filho. Aprender a se mover da mesma exata maneira com que você se senta imóvel. Vivendo no seu corpo.

Esta é a nossa garagem, filho. E este é nosso portão de garagem. Eu sei que você sabe. Eu sei que você já olhou para ele inúmeras vezes antes. Agora… agora enxergue-o, Jim. Enxergue-o como um corpo. A cor besta da alça, a tranca, os pedaços de insetos que ficaram presos debaixo da tinta fresca e ainda estão lá. As rachaduras do sol impiedoso. A cor original? Quem é que vai saber, filhôu…? Os quadrados côncavos recortados, quantos, em quantos níveis nas bordas, que se fazem passar por decoração. Conte os quadrados, talvez… Vamos ver você tratar essa porta como uma dama, filho. Girando a tranca no sentido do relógio com uma mão, isso, e… acho que você vai ter que puxar mais forte, Jim. Acho que mais forte ainda. Me deixe… Assim é que ela quer, Jim. Dê uma olhada. Jim, é aqui que guardamos este Mercury Montclair 1965 que você conhece tão bem. Este Mercury Montclair pesa 1.700 quilos, mais ou menos. Tem oito cilindros e pára-brisa emoldurado e aletas aerodinâmicas, Jim, e tem velocidade máxima na estrada de 150Km/h. Eu descrevi o tom da pintura desse Montclair pro vendedor a primeira vez que o vi como vermelho de lábio mordido. Jim, é uma máquina. Vai fazer o que foi feita pra fazer e vai fazê-lo perfeitamente, mas apenas quando estimulada por alguém que tenha se comprometido a conhecer os truques e juntas do seu corpo. O estimulador deste carro deve conhecer o carro, Jim, senti-lo, estar muito mais dentro dele que… que o porta-luvas. É um objeto, Jim, um corpo, mas não deixe que ele o engane, parado ali, mudo. Ele responderá. Se receber sua parte. Com cuidado exímio. É um corpo e responderá com um ronronar bem-oleado assim que eu puser um pouco de óleo decente nele, todo Mercuryal a centoecinquentão pro motorista que tratar seu corpo como ao dele próprio, que sinta o grande corpo de aço no qual se encontra, que tranquilamente, sem perceber, sinta o plástico áspero da alavanca de câmbio perto do volante ao mudar a marcha como sente a pele e carne, o músculo e o tendão e o osso cobertos com uma teia de aranha cinzenta de nervos na mão repleta de sangue da mesma forma que sente o plástico e o metal e juntas e dentes, os pistões e borracha e cabeçotes do Montclair de combustível âmbar quando muda a marcha. O vermelho corpóreo de lábio mordido, arfando por aí a mais de 100. Jim, um brinde ao nosso conhecimento sobre corpos. Ao tênis de alto-nível na estrada da vida. Ah. Oh.

Filho, você tem dez anos, e isso é má notícia pra alguém da sua idade, mesmo que tenha 1,80m e seja uma possível aberração da glândula pituitária. Filho, você é um corpo, filho. Aquela mente rápida de prodígio científico da qual ela tanto se orgulha e sobre a qual não se cansa de tagarelar: filho, são só espasmos neurais, aqueles pensamentos em sua cabeça são só o som de sua cabeça acelerando, e a cabeça ainda é só corpo, Jim. Guarde na memória. Cabeça é corpo. Jim, me abrace um pouco pra ouvir a má notícia, nos seus dez anos: você é uma máquina um corpo um objeto, Jim, não menos objeto que este rutilante Montclair, esse rolo de mangueira ou aquele ancinho lá no jardim da frente ou bom Jesus essa aranha gorda e nojenta se movendo na teia perto do cabo do ancinho, vê? Vê? Latrodectus mactans, Jim. Viúva. Pegue essa raquete e mova-se graciosamente e com tato até lá e mate aquela viúva pra mim, jovem senhor Jim. Vai. Faça-a dizer “Ksh”. Não peça nomes. Grande garoto. Um brinde a uma seção desaranhada da nossa garagem. Ah.

Corpos corpos por toda parte. Uma bola de tênis é o corpo definitivo, garoto. Estamos chegando ao ponto crucial do que eu tenho que passar pra você antes de sairmos e começarmos a trabalhar esse teu potencial temível. Jim, uma bola de tênis é o corpo definitivo. Perfeitamente redonda. Distribuição homogênea de massa. Mas vazia por dentro, completamente um vácuo. Suscetível a impulso, rotação, força – mal ou bem empregada. Ela refletirá seu próprio caráter. Ela própria sem nenhum. Puro potencial. Dê uma olhada numa bola. Pegue uma bola do baldinho verde de plástico barato cheio de bolas usadas perto das tochas de propano, que eu uso pra praticar um saque aqui e ali, Jimbo. Aí garoto. Agora olhe para a bola. Levante-a. Sinta o peso. Aqui, eu vou… abrir… a bola. Ufa. Vê? Nada aqui a não ser ar evacuado que cheira como um inferno de borracha. Vazio. Puro potencial. Note que eu abri a bola ao longo da costura. É um corpo. Você aprenderá a tratá-la com consideração, filho, alguns diriam um tipo de amor, e ela se abrirá pra você, cumprirá suas ordens, ao seu menor gesto de amante chamando suave. O que tenistas verdadeiramente grandes com corpos robustos têm que os faz superar todos os outros, o que eles têm é um jeito com a bola que é chamado, e tenha em mente o portão da garagem e o forno, toque. Toque a bola. Ah, esse… esse é o toque de um grande jogador na mosca. E da mesma forma será com esse corpo grande, fino, torto e alto demais, senhor Jimbo. Eu prevejo bem aqui. Eu vejo o jeito que você aplicará as lições de hoje em você mesmo enquanto corpo físico.

Nunca mais carregando sua cabeça no nível do peito sobre ombros caídos. Nada de tropeçar. Nada de impulsos exagerados, pratos quebrados, abajures entortados, ombros pensos ou peito encavado, os objetos mais simples girando e resistindo em suas mãozonas finas, rapaz. Imagine como deve ser ser essa bola, Jim. Fisicalidade total. Sem cabeça pra acelerar. Completa presença. Potencial absoluto, paradinha potencialmente absoluta em sua grande e pálida mão de menina, tão jovem que o dedão nem rugas tem na junta. Meu dedão tem rugas na junta, Jim, é todo estropiado. Dê uma olhada nesse dedão aqui. Mas eu ainda o trato como meu. Eu dou o que ele merece.

Quer um gole, filho? Eu acho que você já está pronto prum golinho. Não? Nein? Hoje, Lição Um lá fora, você vai se tornar, pro bem ou pro mal, Jim, um homem. Um jogador. Um corpo em comércio com outros corpos. Um timoneiro ao timão da tua própria nave. Uma máquina no fantasma, por assim dizer. Ah. Um cidadão quatro-olhos de dez anos com gravatinha borboleta e escandalosamente alto… Eu bebo, às vezes, quando não estou mesmo trabalhando, para me ajudar a aceitar as coisas doloridas cujo tempo de te contar chegou, filho. Jim. Está pronto? Eu estou te contando isso agora porque você tem que saber o que estou prestes a te contar se quiser ser mais que o quase-grande tenista que você se tornará de qualquer forma em breve. Segure-se. Filho, prepare-se. É glo… gloriosamente dolorido. Prove só um pouquinho, talvez? Este fresco é de prata. Trate-o com o cuidado devido. Sinta sua forma. O quase macio morno da prata, o couro que envolve metade de sua extensão prateada delgada. Um objeto que merece um toque respeitoso. Sente o quentinho escorregadio? Óleo dos meus dedos. Meu óleo, Jim, do meu corpo. Minha mão não, filho, sinta o frasco. Levante-o. Conheça-o. É um objeto. Um vaso. É um frasco de 200ml cheio de líquido âmbar. Pela metade, aliás, parece. Parece. Este frasco foi tratado com o cuidado devido. Nunca foi derrubado, empurrado ou socado. Nunca uma gota foi derramada dele, nem uma. Eu o trato como se ele pudesse sentir. Eu dou o que ele merece, enquanto corpo. Desatarraxe a tampa. Segure a capa de couro em sua mão direita e use sua mão esquerda livre para sentir a forma da tampa e tocá-la em seus sulcos. Filho… filho, você vai ter que pôr de lado o que é isso esse Guia Columbia de Índices Refratários Segunda Edição, filho. Parece muito pesado, mesmo. Um escangalhador de tendões. Vai foder seu pronator teres e tendões adjacentes antes mesmo que você comece. Você vai ter que pôr o livro de lado dessa vez, jovem Senhor Jimbo, nunca tente lidar com dois objetos ao mesmo tempo sem ter eras de prática esforçada e cuidadosa, como o Brando com sua dis… e ora, não, não se joga o livro, filho, não se deixa simplesmente cair o grande Guia de Índices no chão empoeirado da garagem, fazendo levantar um quadrado de poeira que vai sujar nossas meias brancas pra esporte antes mesmo de chegarmos à quadra, rapaz, Jesus, eu levo cinco minutos explicando que o segredo para se tornar mesmo que só um jogador em potencial é tratar as coisas com o exato… aqui, me deixe ver isso… que livros não são só derrubados com um baque como garrafas de vidro numa lata de lixo, eles são colocados, guiados, com os sentidos no Máximo, sentindo as bordas, a pressão no assoalhinho dos dedos quando você se ajoelha com o livro, o leve empurrão gasoso do ar no chão poeirento… quando o ar se desloca num quadrado leve que não levanta poeira. Tipo “assiiiimm“, não tipo “assim”. Entendeu? Compreendeu?

Ah não faça assim. Filho, não faça assim. Não vá me ficar todo sensível, filho, quando tudo o que estou tentando fazer é ajudar. Filho, Jim, eu odeio quando você faz isso. Seu queixo desaparece atrás dessa gravatinha quando esse seu beiço dependurado treme assim. Você parece desqueixado, filho, e beiçudo. E essa capa de muco descendo no seu lábio superior, o jeito que brilha, não, não, é nojento, filho, você não quer enojar as pessoas, você tem que aprender a controlar essa sua ultrasensibilidade a más notícias, se esforce e exerça alguma droga de controle, esse é o ponto que estou tentando a manhã inteira, deixando de ensaiar, com não um só mas dois testes vitais prontos pra pular no meu pescoço, te mostrar, aqui planejando quem sabe deixar você afastar o banco do carro e tocar o câmbio e talvez até… talvez até dirigir o Montclair, sabe Deus se seus pés vão alcançar, hein Jimbo? Jim, ei, que tal dirigir o Montclair? Porque não, a partir de hoje, você nos levar e estacionar perto da quadra onde hoje você vai — aqui, olhe, viu como eu desatarraxei? A tampa? Com a ponta da pontinha macia dos meus dedos estropiados, os quais bem que eu queria que fossem mais firmes, mas eu estou exercendo controle pra controlar minha raiva por causa desse teu queixo e beiço e capa de catarro e o jeito que esses olhos se desviam e se arregalam como olhos de criança mongoloide quando você está ameaçando chorar, mas só com a ponta dos dedos, aqui, as partes mais sensíveis, as partes banhadas com óleo morno, as almofadas intricadas, eu as sinto cantando com nervos e sangue eu as estendo… além do topo até a abertura de cone da tampa onde as guias ao redor da pequena boca circular se escondem enquanto com a outra mão cantando eu gentilmente seguro a capa de couro de forma a sentir o que o frasco sente quando eu guio… guio a tampa por sobre os trilhos de prata, está ouvindo? Pare com isso e escute, está ouvindo isso? O som das linhas se movendo por bem maquinados canais, com grande cuidado, uma suave espiral de barbearia, minha mão inteira dentro da ponta dos dedos, menos… menos desatarraxando, vê, que guiando, persuadindo, lembrando ao corpo da tampa de prata o que é que ela foi feita pra fazer, maquinada pra fazer, a tampa de prata sabe, Jim, eu sei, você sabe, já falamos disso antes, deixe o livro , garoto, ele não vai sair daí, então a tampa deixa os lábios mornos e sulcados da boca do frasco com apenas um “t”, ouviu isso? um “t” do mais fraco possível? Não um arranhão ou som de trituração ou aspereza, não um áspero raspão a la Brando, uma tentativa de dominação, mas um “t”, uma… nuance, pronto, ah, oh, como o inesquecível primeiro “ponk” de uma bola bem pega, Jim, bom, então pegue o livro, se é pra ficar assim de olho esbugalhado e desqueixado, honestamente Jesus porque eu tento e tento, eu só queria te apresentar à garagem do forno e te deixar dirigir, talvez, sentindo o corpo do Montclair, gastando meu tempo pra ir com você te deixar estacionar perto da quadra com a marcha do Montclair planando neutra, os oito cilindros tamborilando e fazendo “t”, “t”, como um coração saudável e as rodas perfeitamente alinhadas com o acostamento, e pegar meu velho e confiável balde de… balde de lavanderia cheio de bolas e raquetes e toalhas e frasco e meu filho, minha carne de minha carne, branca e muxibenta carne de minha carne que queria embarcar numa carreira no tênis que eu vejo agora irá colocar seu pai estropiado e cansado de voltinha no lugarzinho dele, que queria talvez só por um pouco ser um garoto de verdade e aprender a jogar e se divertir e saracotear e brincar à inegociável luz do Sol pela qual esta cidade é tão famosa, que só queria aproveitar enquanto pode porque terá tua mãe te contado que estamos de mudança? Que estamos voltando pra Califórnia esta primavera, afinal? Estamos de mudança, filho, eu estou escutando uma vez mais o chamado de sereia do celuloide, estou fazendo a última tentativa pra valer que a obrigação de um homem a seu último e evanescente talento merece, Jim, a gente vai se dar bem de novo finalmente pela primeira vez desde que ela anunciou que ia ter você, Jim, pé na estrada, com destino ao celuloide, então diga adiós à escola e ao seu professorzinho de física, aquela mariposinha nervosa, e aqueles seus amigos mondrongos desqueixados manuseadores-de-régua-de-cálculo de não agora espere eu não quis dizer o que eu quis dizer foi que eu queria te contar agora, bem antes do tempo, sua mãe e eu, pra que você possa se ajustar desta vez porque oh você demonstrou de maneira inequivocamente clara o quanto você ficou aborrecido com nossa última mudança pra este estacionamento de trailers, não foi, para este lar móvel com banheiro químico e ferrolhos pra manter a porta no lugar e teias de viúva pra onde se olhe e sujeira se acumulando por tudo feito pó ao invés da sede do Clube de onde eu fiz que nos expulsassem, ou a casa que por minha indiscutível culpa já não podíamos bancar. Foi minha culpa. Quer dizer, de quem mais seria? Estou certo? Por termos movido seu corpo grande e macio com um aviso alegadamente não lá muito prévio e aquela escola do lado leste pela qual você chorou e aquele bibliotecário negro com o cabelo até aqui que… a senhora com o nariz arrebitado na ponta dos pezitos o tempo todo eu tenho que dizer ela parecia uma rematada dona do lado leste de Tucson, cheia de si, de material muito puro, nos instando a abre aspas incentivar seu jeito ótico com Física com o narizinho arrebitado dava pra ver lá dentro e na ponta dos pés como se alguma coisa habilidosa por trás dela tivesse enfiado um anzol entre aquelas grandes narinas de salmão espalmadas e estivesse puxando pro alto em direção ao éter aos pouquinhos aposto que aqueles cotocos sem calcanhar estão juntos no ar a essa altura filho o que você diz filho o que você acha… não, vai, chore, não se iniba, eu não vou dizer uma palavra, exceto que está me afetando menos cada vez que você faz isso, só estou te avisando, eu acho que você está abusando com as lágrimas e o… está ficando menos efic… eficaz comigo cada vez que você as usa apesar de sabermos, ambos sabermos, não sabemos, entre você e eu nós sabemos que elas sempre vão funcionar com tua mãe, não vão, nunca falha, ela sempre vai tomar tua cabeçorra e inclinar no ombro, daquele jeito bem obsceno, se você pudesse ver, dando tapinha-tapinha nas tuas costas como se estivesse fazendo arrotar uma criança obscena muito grande e troncha de gravata-borboleta com um livro erodindo seus pronator teres, chorando, você vai fazer isso quando for crescido? Haverá episódios como esse quando você for um homem ao seu próprio timão? Um cidadão de um mundo que não vai ficar de tapinha-tapinha-pronto-pronto? O teu rosto vai se amassar e inchar assim quando você atingir os grotescos dois metros de altura, dois ponto vinte que nem teu avô que ele apodreça no vácuo de borracha do inferno quando finalmente morder raiz e essa cara chata desqueixada que nem ele apoiada no ombro frágil encatarrado úmido e cansado daquela pobre mulher estúpida eu te contei o que ele fez? Eu te contei o que ele fez? Eu tinha a sua idade Jim aqui pegue o frasco não me dê, oh. Oh. Eu tinha treze, e tinha começado a jogar bem, sério, eu tinha doze ou treze e jogava por anos já e ele nunca foi ver, ele nunca foi até onde eu estava jogando pra assistir, nem mudou sua expressão plana uma vez quando eu trouxe pra casa um troféu, eu ganhei troféus, notícias no jornal NATIVO DE TUCSON SE QUALIFICA PRAS NACIONAIS DO CAMPEONATO DE JRs. ele nunca notou que eu existia, não como eu faço com você, Jim, não porque eu tomo cuidado de recuar e me afastar de você bem antes pra te deixar saber que eu te noto e reconheço e estou ciente de você enquanto corpo e me importo com o que possa estar se passando atrás da cara chata inclinada sobre um prisma feito em casa. Ele joga golfe. Seu avô. Vovozinho. Golfe. Um homem do golfe. Meu tom está transmitindo o desprezo? Bilhar numa mesa grande, Jim. Um jogo desincorporado de pancadas espasmódicas e barro voando. Um abre aspas fecha aspas esporte. Fúria anal e boinas xadrez. Está quase vazio. É isso aí, filho. O que me diz da gente cancelar isso. O que me diz de acabar com o sofrimento âmbar deste frasco daí a gente entra e conta pra ela que você não está se sentindo bem de novo e a gente cancela sua primeira introdução ao Jogo até esse fim-de-semana daí no fim-de-semana que vem a gente compensa e faz dois dias seguidos e temos um intensivo realmente extensivo de introdução ao seu ao que parece ilimitado futuro. Gentileza intensiva e cuidado corporal = grande tênis, Jim. Nós iremos dois dias, você vai dar um mergulhão de cabeça e se molhar todo. São só cinco dólares. A hora na quadra. Uma horinha de nada. Todo dia. Cinco dólares por dia. Nem se preocupe. Dez dólares por um fim-de-semana intensivo quando vivemos num trailer metido a besta e temos que compartilhar a garagem com dois DeSotos e o que parece um Modelo A só nos blocos e meu Montclair não pode ter o tipo de óleo que merece. Não olhe assim. O que é o dinheiro em meus ensaios para os testes de cinema por causa dos quais estamos nos mudando 700 milhas aliás, testes que podem muito bem ser a última tentativa do seu velho de atingir uma vida com algum sentido, comparado com meu filho? Certo? Estou certo? Vem cá, garoto. Vemcávemcávemvem. Isso, garoto. Meu J.O.I.2, joia de carinha legal. Meu garoto, em seu corpo.

Ele nunca veio, Jim. Nem uma vez. Assistir. Minha mãe nunca perdeu uma partida competitiva, claro. Minha mãe foi a tantas que parou de significar qualquer coisa. Ela se tornou parte do ambiente. Mães são assim, como eu tenho certeza de que você sabe muito bem, certo? Estou certo? Não veio uma única vez, filhôu. Nunca se arrastou todo torto e penso e projetou sua sombra ultralonga grotesca, visível mesmo ao meio dia, em alguma quadra em que joguei. Até que nesse dia ele veio. Subitamente, uma vez, sem precedente ou aviso, ele… veio. Ah. Oh. Eu o ouvi chegando bem antes de ele aparecer. Ele projetava uma sombra grande, Jim. Era um eventozito local. Era um negócio local de muito pouca consequência no esquema maior das coisas, e ainda bem no comecinho. Eu estava jogando contra um barãozinho da área, do tipo com equipamento bom e roupas brancas com vincos e lições pagas no country-club que nem assim sabe jogar de verdade, sério, nem com todo o apoio. Você descobrirá que frequentemente vai enfrentar esse tipo de adversário nas primeiras partidas. Esse imprestável brilhoso era algum cliente do filho do meu pai… filho de um dos clientes do meu pai. Então ele veio por causa do cliente. Pra exibir alguma paródia de preocupação paterna. Ele usava chapéu e casaco e gravata com 35°. O cliente. Não lembro o nome. Havia algo de canino em seu rosto, eu lembro, que o filho dele do outro lado da rede tinha herdado. Meu pai não estava nem suando. Eu cresci com o sujeito nesta cidade e nem uma vez eu o vi suar, Jim. Ele usava um Panamá e um terno riscado que homens de negócio tinham que usar nos fins-de-semana naquele tempo. Eles se sentavam à sombra de uma palmeira danificada, tipo entupida de viúvas negras, na folhagem, que descem sem aviso, que se quedam esperando ao calor do meio-dia. Eles sentavam no lençol que minha mãe sempre levava — minha mãe, que está morta, e o cliente. Meu pai ficava de lado, às vezes na sombra ondulante, às vezes não, fumando um cigarro de filtro longo. Filtros longos estavam na moda. Ele nunca se sentava no chão. Não no Sudoeste Americano, não. Aquele era um homem com um saudável respeito por aranhas. E nunca sentava ao chão sob uma palmeira. Ele sabia que era grotescamente alto e estabanado demais pra se levantar rapidamente ou rolar gritando pra fora do caminho no caso de aranhas cairem. É sabido que elas têm disposição de cair bem de cima das árvores nas quais se escondem de dia, você sabe. Cair bem em cima de você se você estiver no chão, na sombra. Ele não era bobo, o filhadamãe. Um golfista.

Eles todos assistiam. Eu estava bem lá na primeira quadra. Aquele parque já não existe, Jim. Carros agora estacionam onde ficavam as quadras de asfalto áspero verde, tremeluzindo no calor. Eles estavam bem lá, assistindo, as cabeças indo e voltando daquele jeito limpador de para-brisa que as pessoas fazem quando assistem tênis de alto nível. E estaria eu nervoso, jovem senhor J.O.I.? Com o primeiro e único O Próprio ali em toda a sua dura glória, assistindo, metade dentro e fora da sombra, sem expressão? Não. Eu estava em meu corpo. Meu corpo e eu éramos um. Minha Wilson de madeira da pilha de Wilsons de madeira em suas prensas trapezoidais era uma extensão consciente do meu braço, e eu a sentia cantando em minha mão, e ela estava viva, minha mão bem armada era a secretária da minha mente, delgada e atenciosa e senza errori, porque eu me conhecia enquanto corpo e estava completamente dentro do meu corpinho de criança, Jim, eu estava em meu grande braço direito e em minhas pernas sem cicatrizes, seguramente alojado, correndo daqui para ali, minha cabeça batendo como um coração, suor debulhando em cada membro, correndo como uma criatura das estepes, pulando, saracoteando, rebatendo com a máxima economia e o mínimo esforço, meus olhos na bola e nos cantos da quadra, eu estava dois, três lances à frente de mim e do filho do cliente canino, moendo o barãozinho sem piedade. Era massacre. Era uma cena saída da Natureza em seu estado mais bruto, Jim. Você tinha que ter estado lá. O guri ficava se dobrando pra recuperar fôlego. Meu saracoteio suave e econômico contrastava com a maneira pesada com que ele se via obrigado a pisar e arremessar. A camiseta branca de crochê e os shorts de marca estavam empapados, então dava pra ver a marca do protetor mordendo aquela bundinha de barãozinho suado. Ele usava uma viseira tremelicante branca típica das mulheres de cinquenta e dois anos no country-club e hotéis classudos do Sudoeste. Eu estava, numa palavra, rápido, ponderado, clarividente. Eu o fiz pisar e frear e se jogar. Eu queria humilhá-lo. O rosto longo e agudo do cliente estava caindo. Meu pai não tinha rosto. Escurecido e então iluminado embaixo da sombra ondulante das frondes embaixo das quais metade dele se encontrava, o rosto coroado de fumaça dos filtros longos de que ele gostava, longas piteiras de plástico amareladas no cabo, imitando o Presidente, como cortesãos babujando com o Rei… coberto com sombra e então fumaça acesa. O cliente não conseguia não abrir a boca. Ele achava que estava vendo futebol, só podia. A voz do cliente era trazida. Nossa quadra era perto da árvore em que eles estavam. As pernas do cliente estavam esticadas pra frente, e recortavam-se na estrela da sombra da palmeira. Fios de sombra entrelaçados na calça dele, vindos da cerca atrás da qual o filho dele e eu jogávamos. Ele bebia a limonada que minha mãe tinha trazido pra mim. Ela fazia fresquinha. Ele disse que eu era bom. O cliente do meu pai. Daquele jeito enfático que carregava sua voz. Sabe, filho? Pela madrugada Incandenza cavalo velho mas este teu filho é bom. Fecha aspas. Eu o ouvir dizer enquanto eu corria e rebatia e saracoteava. E eu ouvi a resposta daquele filho da puta alto, depois de uma pausa quando todo o ar do mundo ficou suspenso. Parado no fundo da quadra, ou retornando pro fundo da quadra, um dos dois, eu ouvi o cliente. A voz dele era trazida. E depois eu ouvi a resposta do meu pai que ele apodreça num inverno verde vazio. Eu ouvi o que… o que ele deu por resposta, filito. Mas só depois que eu caí. Eu insisto neste ponto, Jim. Só assim que eu comecei a cair. Jim, eu estava tentando alcançar uma bola fora de alcance mortal, um drop-shot trôpego, cego, do almofadinha de peido do outro lado da rede. Um ponto que eu podia entregar com todo o conforto. Mas não era assim que eu… que um jogador de verdade faz. Com respeito e esforço devido e cuidado por cada ponto. Você quer ser bom, quase-bom, você dá pra cada bola tudo que tem. Aí dá só mais um pouquinho. Não entrega nada. Mesmo contra almofadinhas de peido. Você joga até o seu limite e então ultrapassa o seu limite daí olha pro seu limite antigo e dá tchauzinho ao embarcar. Você entra em transe. Você sente as bordas e costuras de tudo. A quadra vira um… um lugar único pra se estar. Que fará tudo por você. Não deixará nada escapar ao seu corpo. Os objetos se movem do jeito que foram pensados, ao mais suave e leve toque. Você desliza na clara corrente, fazendo X’s e L’s pela superfície verde-áspera de asfalto, seu suor da mesma temperatura de sua pele, jogando com tanta facilidade e esforços totalmente brancos e e e concentração em transe você nem pára pra considerar se vai tentar alcançar cada bola. Você mal sabe que o faz. Seu corpo faz pra você e a quadra e o Jogo estão fazendo isso pelo seu corpo. Você quase nem está envolvido. É mágica, rapaz. Nada chega perto, quando está bom.

Eu prevejo. Fatos e números e vidro curvado e aqueles seus livros escangalha-cotovelo, as páginas sem peso vão parecer chatas em comparação. Estáticas. Mortas e brancas e chatas. Elas nem chegam… é como uma dança, Jim. O que quero dizer é: eu tinha muito respeito corporal pra escorregar e cair daquele jeito. E outra coisa: eu comecei a cair ainda antes de ouvi-lo responder:

“Sim, Mas Ele Nunca Vai Ser Grande”.

O que ele disse de jeito nenhum me fez cair. Meu oponente enjeitadinho tinha empurrado uma bola pífia bem por cima da rede baixa de parquinho público, um acidente bizarro, um drop-shot mal-batido, e outro homem em outra quadra durante outra lavada teria deixado-a entrar, entregando o ponto desnecessário, passando a chance de acenar com um lencinho lá da nau do seu limite. Não foi uma corrida desesperada em oito cilindros sem fôlego em direção à rede pra tentar rebater a bola na primeira quicada. Mas Jim, qualquer um pode escorregar. Eu não sei no que foi que escorreguei, filho. Diziam que havia aranhas infestando as folhas de palmeira ao longo das cercas. Elas descem à noite em fios, bulbosas, se flexionando. Estou achando que bem pode ter sido numa viúva bulbosa repleta de gosma que eu pisei e escorreguei, Jim, uma aranha, uma aranha louca à solta, descida num fio dentro da sombra, rastejando flácida, ou que pulou direto da folhagem de palmeira no alto da quadra, provavelmente fazendo um sonzinho horripilante levemente flácido quando caiu, saracoteando com as patinhas, piscando grotesca na odiada luz quente, e eu pisei ao avançar e matei e escorreguei na nojeira que aquela aranhona escrota fez. Vê estas cicatrizes? Empelotadas, em fiapos, como se algo tivesse me rasgado na altura dos joelhos que nem o Brando trôpego abriria um envelope com os dentes e o deixaria no chão úmido amassado e rasgado? Todas as palmeiras ao longo da cerca estavam doentes, tinham bicho-da-palmeira, era o ano 1933 D.C, da Grande Epidemia de Bicho-da-Palmeira de Bisbee, por todo o Estado, e elas estavam perdendo as folhas e as folhas estavam secas e da cor de azeitonas bem velhas daquelas que ficam em jarrinhos altos lá no fundo da geladeira e porejavam uma secreção purulenta escorregadia e às vezes caíam abruptamente das palmeiras, girando como espadas de papelão de pirata de filme. Deus eu odeio folhagem, Jim. Estou achando que pode ter sido uma latrodectus diurna ou pus de algum galho. Talvez o vento soprasse pus cruento das frondes, pra dentro da quadra, perto da rede. Enfim. Algo venenoso e infectado, com certeza, súbito e liso. Um segundo é o suficiente, você deve achar, Jim: O corpo foge e lá vai você, de joelhos, escorregando numa quadra que faz seus joelhos pensarem em lixa de papel. De jeito nenhum, filho.

Eu tinha outro frasco assim, filho, menor, um frasco de prata mais safo, no porta-luvas do meu Montclair. Tua mãe devota deu sumiço. O assunto nunca foi mencionado entre nós. De jeito nenhum. Foi um corpo alienígena, ou uma substância, não o meu corpo, e se algo traiu algo aquele dia, creia-me você, filhão garoto foi algo que eu fiz, Jimmer, eu posso bem ter traído aquele belo corpinho liso e bronzeado, eu posso bem ter ficado rígido, ultraconsciente, descuidado, escutando o que meu pai, a quem eu respeitava, eu respeitava aquele homem, Jim, isso é o pior, eu sabia que ele estava lá, estava consciente de seu rosto longo e da sombra longa dos filtros, eu o conhecia, Jim. As coisas eram diferentes quando eu era pequeno, Jim. Eu odeio… Jesus eu odeio dizer esse tipo de coisa, tipo esses clichês as-coisas-eram-outras-no-meu-tempo-de-guri, o tipo de clichê que os pais de antigamente falavam, achando que diziam alguma coisa. Mas era. Diferente. Nossos moleques, os moleques da minha geração, eles… agora vocês, esse pessoal pós-Brando, vocês não conseguem gostar ou desgostar de nós, ou respeitar, não, como seres humanos não, Jim. Seus pais. Não, espere, você não precisa fingir discordar, não, não precisa dizer, Jim. Porque eu sei. Eu podia ter previsto, vendo Brando e o Dean e o resto, e eu sei, então pare de babujar. Eu não culpo a idade de vocês, filhôu. Vocês olham pra bondade ou maldade, sobriedade ou alcoolismo, felicidade ou tristeza, grandeza ou quase-grandeza ou fracasso dos pais do mesmo jeito que veem que uma mesa é quadrada ou o vermelho-lábio do Montclair. Esses moleques de hoje em dia, sei lá, não conseguem sentir, muito menos amar, pra não dizer respeitar. Nós somos apenas corpos pra vocês. Nós somos só corpos e ombros e joelhos feridos e barrigas grandes e carteiras vazias e frascos pra vocês. Não estou dizendo nenhum clichê como “eu quero só ver quando não estiver aqui”, apenas afirmando que vocês nem podem… imaginar nossa ausência. Estamos tão presentes que parou de significar algo. Viemos com o ambiente. Mobília do mundo. Jim, eu conseguia imaginar a ausência daquele homem. Jim, eu estou te falando que você não consegue imaginar minha ausência. É minha culpa, Jim, o tempo todo em casa, me arrastando, joelhos ruins, acima do peso, embriagado, arrotando, desdelgado, suado dentro daquele trailer que é um forno, arrotando, peidando, frustrado, triste, derrubando lâmpada, dando impulso demais. Com medo de dar ao meu talento a última oportunidade que ele merece. Talento é a sua própria expectativa, ou você se põe à altura ou ele sacode um lencinho e se afasta pra sempre. Use ou perca, ele costumava dizer por cima do jornal. Eu… só estou com medo de ter um túmulo que diz AQUI JAZ UM VELHO PROMISSOR. É que… algum potencial é pior que nenhum, Jim. Pior que não ter talento nenhum pra se desperdiçar, ficando pelos cantos bebendo por não ter culhão pra… Deus eu eu sinto tanto, Jim, Você não merece me ver assim. Estou tão assustado, Jim. Estou com tanto medo de morrer sem jamais ter sido visto. Dá pra entender? Será que você já é um quatro-olhos torto grande o bastante pra entender? Dá pra ver que eu estava dando tudo que tinha? Que eu estava , no quente, ouvindo, enfeixado em nervos? Um si-mesmo tocando todos os cantos, eu lembro dela dizendo. Eu senti de uma forma que temo que você e sua geração jamais entenderiam. Era menos cair que ser empurrado pra fora de algo, é assim que me lembro.

Não, não aconteceu em câmera lenta. Um minuto eu estava numa corrida pra diante, no próximo havia mãos às minhas costas e nada sob os pés como um empurrão de uma escadaria. Um empurrão seco bem nas costas e meu corpo promissor com todas as teias de nervos pulsando e disparando foi arremessado aos céus e caiu nos meus joelhos esse frasco está vazio bem em cima dos meus joelhos, com todo meu peso e inércia naquela lixa quente escabrosa, subjugado em uma paródia de oração contemplativa, deslizando pra diante. A carne e tecido e osso deixaram faixas gêmeas de marrom vermelho cinza branco como marcas de pneu de substância corporal se estendendo da linha de saque até a rede. Escorreguei em meus joelhos em chamas, passando pela bola trôpega até a rede que me parou. Nos parou. Minha raquete tinha saído girando Jim e meus braços lá ficaram, desraquetados à minha frente, como um monge flagelado em oração. Me foi concedido ouvir meu pai decretar minha existência corporal como nem mesmo potencialmente grande no instante em que arruinei meus joelhos pra sempre, Jim, de forma que anos depois, já na Universidade, eu nunca consegui dar tchauzinho pra nada além da quase-grandeza, do quase-lá, do tá-pertinho, e depois nem pude sonhar em fazer testes praqueles filmes de praia cheios de calções de banho e gel Brylcreem com que aquele pulha do Avalon está enchendo a burra. Eu não estou insistindo em que o veredicto e a queda punitiva estivessem… conectados, Jim. Qualquer um pode escorregar. Tudo que é necessário é um segundo de respeito mal-posicionado. Filho, foi mais que a voz de um pai, sendo trazida. Minha mãe gritou. Foi um momento religioso. Eu aprendi o que é ser um corpo, Jim, apenas carne enrolada numa meia de nylon frouxa, filho, quando eu me ajoelhei e deslizei até a rede esticada, eu visto por mim mesmo quadro-a-quadro, arregaçado. Talvez eu arrote, engasgue, filho, filho, te contando o que aprendi, filho, meu… meu amor, tarde demais, ao deixar a carne dos meus joelhos atrás de mim, eu deslizei e lá fiquei numa postura de súplica sobre os ossos expostos dos meus joelhos com meus dedos desraquetados enganchados na trama da rede enquanto do outro lado o barãozinho ensopado largava sua cara raquete Davis e corria em minha direção com o visor pra cima e as mãos nas bochechas. Meu pai e o cliente para o qual ele estava representando me arrastaram pra sombra infectada da palmeira onde ela se ajoelhou sobre o lençol listrado mordendo a junta do dedo, Jim, e eu senti a religião da fisicalidade aquele dia, não muito mais velho que você, filho, sapatos cheios de sangue, seguro debaixo dos braços por dois corpos grandes como o seu, e arrastado pra fora de uma quadra com duas linhas extras. É um dia religioso, pivotal e seminal, quando lhe é concedido ouvir e sentir o seu destino no mesmo momento, Jim. Eu notei o que tenho certeza você já notou há muito tempo, eu sei, eu sei que você me viu sendo trazido pra casa várias vezes, arrastado pela porta, sob o chamado Efeito, filho, ajudado por taxistas à noite, eu vi sua sombra grotesca projetada do alto da escada pela qual eu paguei, filho: Como os bêbados e feridos são arrastados pra fora da arena como um Cristo desossado, um homem sob cada braço, pés arrastando, olhos no éter.

___________________________________
¹ – Antes do Patrocínio. No futuro de 1996, data em que o livro foi lançado, os anos terão nome de produtos. A maior parte da história se passa no Ano Da Fralda Geriátrica Depend.
² – James Orin Incandenza.

Comentários encerrados.